BURKE, Peter. A Escola dos Annalles, 1929-1989. A revolução francesa da historiografia. São Paulo: Unesp, 1991. 154 páginas.
“Em toda a literatura, a sociedade contempla a sua própria imagem.” Marc Bloch.
“É necessário ser herético”. Lucien Febvre
“As mudanças ocorrem no tempo de gerações, e mesmo de séculos, por isso os contemporâneos dos fatos nem sempre se apercebem delas.” Fernand Braudel
“Meu grande problema, o único problema a resolver, é demonstrar que o tempo avança com diferentes velocidades”.Fernand Braudel
Apresentação
“A insatisfação que os jovens Marc Bloch e Lucien Febvre demonstravam, nas décadas de 10 e 20, em relação à história política, sem dúvida estava vinculada à relativa pobreza de suas análises, em que situações históricas complexas se viam reduzidas a um simples jogo de poder entre grandes – homens ou países – ignorando que, aquém e além dele, se situavam campos de forças estruturais, coletivas e individuais que lhe conferiam densidade e profundidade incompatíveis com o que parecia ser a frivolidade dos eventos.” ( Pág 7)
“A necessidade de uma história mais abrangente e totalizante nascia do fato de que o homem se sentia como um ser cuja complexidade em sua maneira de sentir, pensar e agir, não podia reduzir-se a um pálido reflexo de jogos de poder, ou de maneiras de sentir, pensar e agir dos poderosos do momento. Fazer uma outra história, na expressão usada por Febvre, era portanto menos redescobrir o homem do que, enfim, descobri-lo na plenitude de suas virtualidades, que se inscreviam concretamente em suas realizações históricas.” ( Pág 7)
“Como em Michelet, não se desprezava o subjetivo, a individualidade, como em Marx ou em outros historiadores que assentavam suas análises no econômico e no social; não se esquecia de que as estruturas sempre têm algo a dizer a respeito do comportamento do homem; e como Burckhardt, afirmava-se que o homem não se confinava a um corpo a ser mantido, mas também um espírito que criava e sentia diferentemente, em situações diferençadas.” ( Pág 7)
“Por outro lado, permite compreender que o engajamento histórico não é uma via de mão única e que buscar o conhecimento do homem integral e total – preocupação constante de Marx – não deve limitar-se a vê-lo como prisioneiro de estruturas asfixiantes, mas também como um espírito capaz de ser livre por sua criatividade.” ( Pág 9)
Prefácio
“Uma boa parte dessa nova história é o produto de um pequeno grupo associado à revista Annales, criada em 1929. Embora esse grupo seja chamado geralmente de a “Escola dos Annales”, por se enfatizar o que possuem em comum, seus membros, muitas vezes, negam sua existência ao realçarem as diferentes contribuições individuais no interior do grupo.” ( Pág 11)
“O núcleo central do grupo é formado por Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff e Emmanuel Le Roy Ladurie. Próximos desse centro estão Ernest Labrousse, Pierre Vilar, Maurice Agulhon e Michel Vovelle, quatro importantes historiadores cujo compromisso com uma visão marxista da história particularmente forte no caso de Vilar – coloca-os fora desse núcleo. Aquém ou além dessa fronteira estão Roland Mousnier e Michel Foucault. Este aparece esporadicamente neste estudo em razão da interpenetração de seus interesses históricos com os vinculados aos Annales.” ( Pág 11)
“O objetivo deste livro é descrever, analisar e avaliar a obra da escola dos Annales. Essa escola é, amiúde, vista como um grupo monolítico, com uma prática histórica uniforme, quantitativa no que concerne ao método, determinista em suas concepções, hostil ou, pelo menos, indiferente à política e aos eventos. Esse estereótipo dos Annales ignora tanto as divergências individuais entre seus membros quanto seu desenvolvimento no tempo. Talvez seja preferível falar num movimento dos Annales, não numa “escola”. ( Pág 12)
“Esse movimento pode ser dividido em três fases. Em sua primeira fase, de 1920 a 1945, caracterizou-se por ser pequeno, radical e subversivo, conduzindo uma guerra de guerrilhas contra a história tradicional, a história política e a história dos eventos. Depois da Segunda Guerra Mundial, os rebeldes apoderaram-se do establishement histórico. Essa segunda fase do movimento, que mais se aproxima verdadeiramente de uma “escola”, com conceitos diferentes (particularmente estrutura e conjuntura) e novos métodos (especialmente a “história serial” das mudanças na longa duração), foi dominada pela presença de Fernand Braudel.” ( Pág 12)
“Na história do movimento, uma terceira fase se inicia por volta de 1968. É profundamente marcada pela fragmentação. A influência do movimento, especialmente na França, já era tão grande que perdera muito das especificidades anteriores. Era uma “escola” unificada apenas aos olhos de seus admiradores externos e seus críticos domésticos, que perseveravam em reprovar-lhe a pouca importância atribuída à política e à história dos eventos. Nos últimos vinte anos, porém, alguns membros do grupo transferiram-se da história socioeconômica para a sociocultural, enquanto outros estão redescobrindo a história política e mesmo a narrativa.” ( Pág 12)
1 - O antigo regime na historiografia e seus críticos
“Por volta de meados do século XVIII, um certo número de escritores e intelectuais, na Escócia, França, Itália, Alemanha e em outros países, começou a preocupar-se com o que denominava a “história da sociedade”. Uma história que não se limitava a guerras e à política, mas preocupava-se com as leis e o comércio, a moral e os “costumes”, temas que haviam sido o centro de atenção do famoso livro de Voltaire Essai sur lés moeurs.” ( Pág 17)
“Contudo, uma das conseqüências da chamada “Revolução Copernicana” na história ligada ao nome de Leopold von Ranke, foi marginalizar, ou re-marginalizar, a história sociocultural. Os interesses pessoais de Ranke não se limitavam à história política. Escreveu sobre a Reforma e a Contra-Reforma e não rejeitou a história da sociedade, da arte, da literatura ou da ciência. Apesar disso, o movimento por ele liderado e o novo paradigma histórico elaborado arruinaram a “nova história” do século XVIII. Sua ênfase nas fontes dos arquivos fez com que os historiadores que trabalhavam a história sociocultural parecessem meros dilettanti. ( Pág 18)
“Mesmo no século XIX, alguns historiadores foram vozes discordantes. Michelet e Burckhardt, que escreveram suas histórias sobre o Renascimento mais ou menos na mesma época, 1865 e 1860, respectivamente, tinham uma visão mais ampla da história do que os seguidores de Ranke. Burckhardt interpretava a história como um campo em que interagiam três forças – o Estado, a Religião e a Cultura –, enquanto Michelet defendia o que hoje poderíamos descrever como uma “história da perspectiva das classes subalternas”, em suas próprias palavras “a história daqueles que sofreram, trabalharam, definharam e morreram sem ter a possibilidade de descrever seus sofrimentos”.” (Pág 18)
“Não podemos esquecer que a obra-prima do velho historiador francês Fustel deCoulanges, A Cidade Antiga (1864), dedicava-se antes à história da religião, da família e da moralidade, do que aos eventos e à política. Marx também oferecia um paradigma histórico alternativo ao de Ranke. Segundo sua visão histórica, as causas fundamentais da mudança histórica deveriam ser encontradas nas tensões existentes no interior das estruturas socioeconômicas.” ( Pág 19)
“De qualquer forma, os historiadores eram vistos dessa maneira pelos cientistas sociais. O desprezo de Durkheim pelos eventos já foi mencionado; seu seguidor, o economista François Simiand, foi mais longe nesse sentido, quando, num famoso artigo, atacou o que chamou de “os ídolos da tribo dos historiadores”. Segundo ele, havia três ídolos que deveriam ser derrubados: “o ídolo político”, “a eterna preocupação com a história política, os fatos políticos, as guerras, etc., que conferem a esses eventos uma exagerada importância”; o “ídolo individual”, isto é, a ênfase excessiva nos chamados grandes homens, de forma que mesmo estudos sobre instituições eram apresentados como “Pontchartrain e o Parlamento de Paris”, ou coisas desse gênero; e, finalmente, o “ídolo cronológico”, ou seja, “o hábito de perder-se nos estudos das origens” . “ ( Pág 21)
“Talvez tenha sido por essa razão que Seignobos se transformou no símbolo de tudo aquilo a que os reformadores se opunham. De fato, ele não era exclusivamente um historiador político, pois escrevera também sobre civilização. Estava interessado na relação entre a história e as ciências sociais, embora não tivesse a mesma visão dessa relação que Simiand ou Febvre. Estes publicaram duras críticas a seu trabalho. A crítica de Simiand apareceu numa nova revista, a Revue de Synthèse Historique, fundada por um grande empreendedor intelectual, Henri Berr. Sua intenção, encorajar historiadores a colaborar com outras disciplinas, especialmente com a psicologia e a sociologia, na esperança de produzir o que ele chamava de “psicologia histórica” ou “coletiva”. ” ( Pág 22)
2 – Os fundadores: Lucien Febvre e Marc bloch
“Les Rois Thaumaturges merece ser considerada uma das grandes obras históricas do nosso século. Seu tema é a crença, muito difundida na Inglaterra e na França, da Idade Média até o século XVIII, de que os reis tinham o poder de curar os doentes de escrófula, uma doença da pele conhecida como o “mal dos reis”, através do toque real, que se fazia acompanhar de um ritual com essa finalidade.” ( Pág 28)
“O autor considerava seu livro, com alguma razão, uma contribuição à história política da Europa no sentido mais amplo e verdadeiro do termo “político”, pois nele analisava a idéia de monarquia. “O milagre real foi acima de tudo a expressão de uma concepção particular do poder político supremo”.” ( Pág 28)
“Les Rois Thaumaturges Les Rois Thaumaturges foi notável em pelo menos três outros aspectos. Primeiro, porque não se limitava a um período histórico convencional, a Idade Média. Seguindo o conselho que mais tarde formularia em termos gerais em seu Métier d’historien, Bloch escolheu o período para localizar o problema, o que significava que tinha de escrever “ a história da longa-duração”, como foi chamada por Braudel uma geração depois. Tal perspectiva conduziu Bloch a conclusões interessantes; uma das mais importantes foi a de constatar que o ritual do toque não apenas sobreviveu no século XVII, a época de Descartes e de Luís XIV, mas nele floresceu como jamais, pelo menos no sentido de que Luís XIV tocou um número maior de doentes do que seus predecessores. Não era, pois, um mero “fóssil”.” ( Pág 29)
“De maneira semelhante, o artigo de Febvre sobre a Reforma critica os historiadores religiosos por tratarem o episódio como essencialmente vinculado aos “abusos” institucionais e a intenção de reformá-los, mais do que como “uma profunda revolução do sentimento religioso”. De acordo com Febvre, a razão dessa revolução deveria ser buscada, ainda uma vez, na ascensão da burguesia, que “necessitava de... uma religião que fosse transparente, racional, humana e amavelmente fraternal” . A invocação da burguesia parece hoje um pouco recorrente, mas o intento de ligar a religião à história social permanece inspiradora.” ( Pág 31)
“Ele admitia que as evidências desse grupo social “datavam de um tempo em que ele nada mais era do que uma sombra de si mesmo”, mas argumentava que essas últimas evidências permitiam “apreender vestígios” do que era o sistema em sua plenitude. Em outras palavras, Bloch não criou o novo método. Sua tarefa foi empregá-lo de uma maneira mais consciente e sistemática do que os seus predecessores.”( Pág 36)
“O segundo estudo, La societé féodale, é o livro pelo qual Bloch é mais conhecido. É uma ambiciosa síntese que abrange mais de quatro séculos de história européia, vai de 900 a 1300, enfocando uma grande variedade de tópicos, muitos dos quais discutidos em outras obras: servidão e liberdade, monarquia sagrada, a importância do dinheiro e outros. Por isso, pode-se afirmar que se trata de uma obra que sintetiza o trabalho de toda a sua vida. ( Pág 36)
“Diferentemente de seus primeiros estudos sobre o sistema feudal, não se restringe à análise das relações entre a propriedade agrária, a hierarquia social, a guerra e o estado. Preocupa-se com a sociedade feudal como um todo, com o que hoje designaríamos “a cultura do feudalismo”. Como também, ainda uma vez, com a psicologia histórica, com o que o autor chamava de “modos de sentir e de pensar”. É a parte mais original do livro, consubstanciada numa discussão sobre temas como o sentido do tempo, ou melhor, a medieval “indiferença pelo tempo”, ou, pelo menos, sua falta de interesse em mensurá-lo acuradamente. Dedica também um capítulo à “memória coletiva”, um tema que tanto o fascinou quanto ao seu amigo, o sociólogo durkheiminiano Maurice Halbwachs.” (Pág 36)
“ Em toda a literatura, a sociedade contempla a sua própria imagem.” ( Pág 36)
“Pouco a pouco os Annales converteram-se no centro de uma escola histórica. Foi entre 1930 e 1940 que Febvre escreveu a maioria de seus ataques aos especialistas canhestros e empiricistas, além de seus manifestos e programas em defesa de “um novo tipo de história” associado aos Annales –postulando por pesquisa interdisciplinar, por uma história voltada para problemas , por uma história da sensibilidade, etc.” ( Pág 38)
“Sua única feição iconoclástica era o capítulo em que Bloch atacava o que denominou, no estilo de Simiand, “o ídolo das origens”, defendendo que todo fenômeno histórico tem de ser explicado em termos de seu tempo, e não em função de tempos anteriores.” ( pág 39)
“De uma maneira semelhante, Febvre agora tentava explicar por que o povo não duvidava da existência de Deus. Argumentava, que o “instrumental intelectual” do período, como o denominava, não permitia a descrença.” (Pág 40)
“Enfocou o problema com uma verve característica, por uma espécie de via negativa, anotando a importância do que faltava ao século XVI, as palavras que faltavam, incluindo termos-chave, tais como “absoluto” e “relativo”, “abstrato” e “concreto”, “causalidade”, “regularidade”, e tantos outros. “Sem eles”, indaga enfaticamente, “como poderia o pensamento de alguém possuir um verdadeiro vigor filosófico, solidez e claridade?”.” (Pág 41)
“O profundo interesse de Febvre pela lingüística subjaz a essa discussão extremamente original. Contudo, ele não se contentou com uma análise lingüística. O livro finaliza com um debate sobre alguns problemas da psicologia histórica. É a parte do livro mais conhecida, bastante controvertida, mas muito inspiradora. Observa, por exemplo, que as concepções seiscentistas de espaço e tempo eram extremamente imprecisas se comparadas com os nossos padrões. “Em que ano nasceu Rabelais? Ele não sabia”, e nada havia de incomum nesse desconhecimento. “O tempo mensurado”, ou o tempo de relógio, era ainda menos significativo do que o “tempo vivenciado”, descrito em termos de pôr-de-sol, do vôo das aves ou da extensão de uma Ave Maria. Febvre vai mais longe e sugere que a visão era um sentido “subdesenvolvido” nesse período, e que o sentimento de beleza da natureza não existia. “Não existia um Hotel Belavista no século XVI, nem qualquer Hotel Campo Belo. Esses nomes apenas apareceram com o Romantismo.” (Pág 41)
“De acordo com Febvre, havia ainda uma outra ausência mais significativa na visão de mundo do período: “Ninguém, então, tinha noção do que era impossível”. Entendo que Febvre esteja presumindo que não havia um critério aceito geralmente para o que era impossível, pois o adjetivo “impossível” não consta de sua relação das “palavras que faltam”. Como resultado dessa falta de critério, o que denominamos “ciência” era literalmente impensável no século XVI. “Devemos nos resguardar de projetar esta concepção moderna de ciência nos quadros de referência de nossos ancestrais”. O instrumental intelectual da época era muito “primitivo”. Assim, uma análise precisa e técnica do significado do termo “ateísta” levou muitos escritores a uma temerária caracterização da visão de mundo de uma época inteira.” (Pág 41)
“Os Annales começaram como uma revista de seita herética. “É necessário ser herético”, declarou Febvre em sua aula inaugural, Oportet haereses esse (Febvre, 1953, p.16). Depois da guerra, com tudo, a revista transformou-se no órgão oficial de uma igreja ortodoxa47. Sob a liderança de Febvre os revolucionários intelectuais souberam conquistar o establishment histórico francês. O herdeiro desse poder seria Fernand Braudel.” (Pág 43)
3- A era Braudel
“Aguas mais calmas, que correm mais profundamente, são o objeto da segunda parte do Mediterrâneo, denominada “Destinos coletivos e movimentos de conjunto”; sua preocupação, a história das estruturas-sistemas econômicos, estados, sociedades, civilizações e formas mutantes de guerra. Esta história se movimenta a um ritmo mais lento do que a dos eventos. As mudanças ocorrem no tempo de gerações, e mesmo de séculos, por isso os contemporâneos dos fatos nem sempre se apercebem delas. Mas, mesmo assim, eles são carregados pela corrente.” (Pág 48)
“Como as estruturas políticas, as estruturas sociais dos dois grandes impérios –opostas entre si de diversas maneiras no topo – caminharam gradativamente no sentido de se assemelharem cada vez mais. As principais tendências sociais na Anatólia e nos Balcãs, nos séculos XVI e XVII, corriam paralelas às da Espanha e Itália, sendo que esta, durante o período, estava submetida em grande parte às leis espanholas. Segundo Braudel, a principal tendência, em ambos os lados, era a polarização social e econômica. A nobreza enriquecia e migrava para as cidades, os pobres tornavam-se cada vez mais pobres e eram empurrados para a pirataria e o banditismo. Quanto às classes médias, desapareceram ou “emigraram” para a nobreza, processo descrito por Braudel como a “traição” ou a “falência” da burguesia.” (Pág 49)
“É provavelmente revelador que Braudel use em seus escritos, mais de uma vez, a metáfora da prisão, descrevendo o homem como “prisioneiro” não somente do seu ambiente físico, mas também de sua estrutura mental (os quadros mentais são também prisões de longa duração) (Braudel, 1969, p. 31). Diferentemente de Febvre, Braudel não percebe a dupla face das estruturas, que são, ao mesmo tempo, estimulantes e inibidoras. “Quando penso no indivíduo, escreveu uma vez, sou sempre inclinado a vê-lo como prisioneiro de um destino sobre o qual pouco pode influir”.” ( Pág 53)
“O debate sobre os limites da liberdade e o determinismo é um daqueles que deverão permanecer até quando a historiografia existir. Independentemente da opinião dos filósofos, é extremamente difícil aos historiadores, nesse debate, irem além de uma simples afirmação de sua própria posição.” ( Pág 53)
“Para os historiadores, é mais significativa a maneira pela qual ele maneja o tempo, seu intento “de dividir o tempo histórico em tempo geográfico, tempo social e tempo individual”, realçando a importância do que se tornou conhecido, desde a publicação do famoso artigo, como a longa duração (Ibid. p. 21; Braudel 1958). A longa duração de Braudel pode ser curta em relação aos padrões dos geólogos, mas sua ênfase do “tempo geográfico” alertou muitos historiadores.” ( Pág 55)
“Segundo Braudel, a contribuição especial do historiador às ciências sociais é a consciência de que todas as “estruturas” estão sujeitas a mudanças, mesmo que lentas (Braudel, 1969, pp. 26 ss.). Era impaciente com fronteiras, separassem elas regiões ou ciências. Desejava ver as coisas em sua inteireza, integrar o econômico, o social, o político e o cultural na história “total”. “Um historiador fiel às lições de Lucien Febvre e Marcel Mauss desejará sempre ver o todo, a totalidade do social”.” (Pág 55)
“Vale lembrar a advertência de que achava necessário acrescentar para preservar uma certa distância intelectual de Marx e, mais ainda, do marxismo, evitando cair na armadilha de uma estrutura intelectual que considerava muito rígida. “O gênio de Marx, o segredo de sua longa influência, escreveu Braudel, está no fato de ter sido o primeiro a construir verdadeiros modelos sociais, fundamentados na longa duração histórica. Esses modelos se sedimentaram em toda sua simplicidade por lhe darem o status de leis” Braudel, 1969, p. 51).” (Pág 63)
“Ele foi assim , de alguma maneira, alheio a dois grandes movimentos no interior da história dos annales de seu tempo, a história quantitativa e a história das mentalidades.” (Pág 66)
“Apesar de sua liderança carismática e de sua contribuição, o desenvolvimento da escola dos Annales nos tempos de Braudel, não pode ser explicado apenas em função de suas idéias, interesses e influências. Os “destinos coletivos e as tendências gerais” do movimento merecem também ser examinados. Dessas tendências, a mais importante, de mais ou menos 1950 até 1970, ou mesmo mais, foi certamente o nascimento da história quantitativa. Esta “revolução quantitativa”, como foi chamada, foi primeiramente sentida no campo econômico, particularmente na história dos preços. Da economia espraiou-se para a história social, especialmente para a história populacional.” (Pág 67)
“Não se constituia em novidade os historiadores econômicos lidarem com estatísticas. Um grande número de pesquisas sobre a história dos preços havia sido realizado no século XIX (Wiebe, 1895). O início dos anos 30 assistiu a uma explosão de interesse pelo tema, vinculada, sem dúvida, à hiperinflação alemã e ao estouro das bolsas em 1929.” (Pág 67)
“Como já vimos, nem Febvre nem Bloch tinham grande interesse nas idéias de Marx. Apesar de seu socialismo e de sua admiração por Jaurès, Febvre era muito voluntarista para ter Marx como fonte de inspiração. Quanto a Bloch, apesar de seu entusiasmo pela história econômica, afastava-se de Marx em razão de sua perspectiva durkheiminiana (Suratteau, 1983). Braudel, como já vimos, deve mais a Marx, mas apenas em suas últimas obras.”(Pág 68)
“De uma maneira similar, a maioria das monografias regionais, dentro do estilo dos Annales das décadas de 60 e 70, uma notável obra coletiva, restringia-se à história econômica e social, com introduções geográficas ao modelo de Braudel.” (Pág 72)
4 - A terceira geração
“Mais significativas, contudo, do que as tarefas administrativas foram as mudanças intelectuais ocorridas nos últimos vinte anos. O problema está em que é mais difícil traçar o perfil da terceira geração do que das duas anteriores. Ninguém neste período dominou o grupo como o fizeram Febvre e Braudel. Alguns comentadores chegaram mesmo a falar numa fragmentação (Dosse, 1987).”(Pág 79)
“A terceira geração é a primeira a incluir mulheres, especialmente Christiane Klapisch, que trabalhou sobre a história da família na Toscana durante a Idade Média e o Renascimento; Arlette Farge, que estudou o mundo social das ruas de Paris no século XVIII; Mona Ozouf, autora de um estudo muito conhecido sobre os festivais durante a Revolução Francesa; e Michèle Perrot, que escreveu sobre a história do trabalho e a história da mulher.”(Pág 80)
“Por diferentes caminhos, tentaram fazer uma síntese entre a tradição dos Annales e as tendências intelectuais americanas-como a psico-história, a nova história econômica, a história da cultura popular, antropologia simbólica, etc.” (Pág 80)
“Lucien Febvre tomou emprestadas suas idéias sobre a psicologia de Blondel e Wallon. Besançon, Le Roy Ladurie e Delumeau tomaram suas idéias principalmente de Freud, dos freudianos ou neofreudianos. O estilo americano de psico-história, orientado no sentido do estudo de indivíduos, finalmente encontrou a psicologia histórica francesa, dirigida no sentido do estudo de grupos, embora as duas correntes não se tenham fundido numa síntese.” (Pág 85)
“Sua contribuição mais substancial, contudo, para a história das mentalidades, ou à história do “imaginário medieval”, como agora denomina, foi realizada vinte anos depois com a publicação do La naissance du Purgatoire, uma história das mudanças das representações da vida depois da morte. Segundo Le Goff, o nascimento da idéia de Purgatório fazia parte da “transformação do cristianismo feudal”, havendo conexões entre as mudanças intelectuais e as sociais. Ao mesmo tempo, insistia na “mediação” de “estruturas mentais”, de “hábitos de pensamento”, ou de “aparatos intelectuais”, em outras palavras, de mentalidades, observando que, nos séculos XII e XIII, surgiram novas atitudes em relação ao tempo, espaço e número, inclusive o que ele chamava do “livro contábil da vida depois da morte” (Pág 86)
“Ideologia, observa Duby, não é um reflexo passivo sobre a sociedade, mas um projeto para agir sobre ela”.(Pág 87)
“ A história das mentalidades não foi marginalizada nos Annales, em sua segunda geração, apenas porque Braudel não tinha interesse nela. Existiram pelo menos, duas outras razões mais importantes para essa marginalização. Em primeiro lugar, um bom número de historiadores franceses acreditava, ou pelo menos pressupunha, que a história social e econômica era mais importante, ou mais fundamental, do que outros aspectos do passado. Em segundo lugar, a nova abordagem quantitativa, analisada no capítulo anterior, não encontrava no estudo das mentalidades o mesmo tipo de sustentação oferecido pela estrutura socioeconômica.” ( Pág 88)
“No final da década de 70, os inconvenientes dessa espécie de história tornaram-se visíveis. De fato, houve algo como que uma reação negativa indiscriminada contra a abordagem quantitativa. Ao mesmo tempo se formava uma reação contrária ao que os Annales defendiam, especialmente contra o domínio da história estrutural e social. Olhando para o lado positivo dessas reações, podemos distinguir três correntes: uma mudança antropológica, um retorno à política e um ressurgimento da narrativa.” (Pág 93)
“Tudo o que os historiadores anteriores pareciam desejar de sua disciplina vizinha era a oportunidade de sobrevoá-la, de tempos em tempos, em busca de novos conceitos. Alguns historiadores das décadas de 70 e 80, contudo, demonstraram intenções mais sérias. Podiam mesmo pensar em termos de casamento, em outras palavras em termos de “antropologia histórica” ou de “etno-história”. (Pág 94)
“Um ponto mais geral enfatizado por Chartier é que é impossível “estabelecer relações exclusivas entre formas culturais específicas e grupos sociais particulares”. Isto claramente torna a história da cultura serial bem mais difícil, se não mesmo impossível. Chartier mudou, portanto, sua atenção, seguindo Pierre Bourdieu e Michel De Certeau, para as “práticas” culturais compartilhadas por vários grupos.”(Pág 99)
“Febvre e Braudel pouco se preocuparam com a política nacional, o que não ocorreu com um bom número de historiadores proeminentes do grupo, que estiveram envolvidos com a política francesa do pós-guerra, freqüentemente como membros – pelo menos, por um certo tempo – do Partido Comunista.” (Pág 100)
“O renascimento não é simplesmente um retorno ao passado. A biografia histórica é praticada por diferentes razões e assume formas diferentes. Pode ser um meio de entender a mentalidade de um grupo. Uma dessas formas é a vida de indivíduos mais ou menos comuns, como o burguês Joseph Sec, sobre quem Vovelle escreveu em razão de sua “irresistível ascensão”, ou do artesão parisiense, Jean-Louis Ménétra, estudado por Daniel Roche.”(Pág 104)
“Paralela ao “retorno à política”, houve recententemente um “renascimento da narrativa” entre os historiadores franceses e de outros países. A frase é de Lawrence Stone, um historiador inglês que atribui a tendência a “uma difundida desilusão com o modelo determinista da explicação marxista”, empregada por historiadores marxistas e dos Annales, e especialmente com o fato de relegarem a cultura à superestrutura ou “terceiro nível”.”(Pág 104)
5 – Os annales numa perspectiva global
“Um outro aspecto da influência dos Annales é a difusão de conceitos, abordagens e métodos, de um período histórico para outro, de uma região para outra. O movimento tem sido dominado por estudiosos do início da Europa moderna (Febvre, Braudel, Le Roy Ladurie), seguidos de perto por medievalistas (Bloch, Duby, Le Goff).” (Pág 113)
“A conclusão paradoxal a que chegou um observador alemão simpático ao movimento é a de que uma história, ao estilo dos Annales, sobre a história de nosso século é, ao mesmo tempo, necessária e impossível. “Se for escrita, não será história ao estilo dos Annales. Mas à história contemporânea não pode continuar a ser escrita sem os Annales.” (Weaseling, 1978).” (Pág 113)
“Embora tenha sido um antigo discípulo de Bloch, Henri Brunschwig, que se tornou um dos mais destacados historiadores da África colonial, seu estudo sobre o imperialismo francês parece dever pouco aos Annales, sem dúvida porque sua preocupação com o passado recente e com a relativamente curta duração (1871-1914) tornam esse modelo irrelevante.” (Pág 114)
“Quanto à Ásia è à América, as coisas são ainda mais complicadas. Embora existam sinais de um interesse crescente nessa abordagem e quatro membros do grupo convidados a participar de uma conferência sobre “a nova história”, realizada em Nova Delhi, em 1988, os historiadores hindus pouco se aproveitaram dos Annales.” ( Pág 115)
“O mais criativo grupo de historiadores hindus, que navegam sob a bandeira dos “estudos subalternos”, conhecem bem a tradição francesa, mas preferem um marxismo aberto.” (Pág 115)
“Um certo número de historiadores japoneses estudou na Hautes Études, mas todos trabalham com a história da Europa.” (Pág 115)
“No desenvolvimento intelectual de Foucault, por exemplo, a “nova história” francesa desempenhou um papel significativo. Foucault caminhou em linhas paralelas às da terceira geração dos Annales. Da mesma maneira que ela, estava preocupado em ampliar os temas da história. Ele tinha algo à ensinar-lhes, como já vimos (conf. p.103.), mas havia o que deles aprender, também.” (Pág 117)
“O que Foucault gosta de denominar sua “arqueologia”, ou a sua “genealogia”, tem, pelo menos, uma semelhança familiar com a história das mentalidades. Ambas as abordagens mostram uma grande preocupação com tendências de longa duração e uma relativa despreocupação com pensadores individualizados.” (Pág 118)
“Foucault não aceitava na abordagem dos Annales, em relação à história intelectual, o que considerava a ênfase excessiva na continuidade (Foucault, 1969, p. 32). Era precisamente em sua vontade de ir até o fundo dos problemas e em discutir como as visões de mundo se modificam que Foucault diferia mais agudamente dos historiadores das mentalidades. Estes têm coisas importantes a aprender de sua ênfase nas “rupturas” epistemológicas, por mais furiosos que estejam com sua recusa em explicar tais descontinuidades.” (Pág 119).
“Em outras partes, a situação é mais complicada. Embora o ensaio de Febvre sobre geografia histórica tenha sido traduzido para o inglês logo após a sua publicação, o mundo de fala inglesa era dominado por um estilo tradicional de geografia que pouco espaço deixava para a abordagem francesa. Esse consenso quebrou-se em data recente e foi substituído por um pluralismo, ou melhor, por uma forte disputa entre marxistas, quantitativistas, fenomenólogos e defensores de outros tipos de abordagens, incluindo-se aí os defensores de Braudel.” (Pág 119)
REFERÊNCIA:
BURKE, Peter. A Escola dos Annalles, 1929-1989. A revolução francesa da historiografia. São Paulo: Unesp, 1991. 154 paginas.
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