quinta-feira, 17 de setembro de 2009

O Tempo não-reconciliado - Peter Pál Pelbart.


ALLIEZ, Énric (org). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Ed.34, 2000.

560 p. (Coleção TRANS)

O Tempo não-reconciliado


Peter Pál Pelbart

“Deleuze Ts`ui Pen, diferentemente de Newton e Schopenhauer, não acreditava num tempo uniforme, absoluto, porém, em infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram abrange todas as possibilidades. Cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, ao invés de optar por uma e eliminar as outras, opta por todas – isto é, cria múltiplos futuros, diversos tempos que também proliferam e bifurcam, produzindo essa pululação de vidas disparatadas.” P.87

“Eis alguns fragmentos que compõem o bizarro mosaico deleuzeano do tempo, com suas respectivas colorações: o presente como síntese passiva sub-representativa, ou contemplação contraente( Plotino, Hume); o passado como Memória ontológica, Memória-mundo, Cone Virtual ( Bergson); o futuro como retorno seletivo que rejeita Sujeito, Memória,Hábito (Nietzsche); a oposição Aion/ Cronos (estóicos); o tempo do Acontecimento (Péguy,Blanchot); o Intempestivo( Nietzsche); o tempo como “defasagem” (Simondon); a Censura e um tempo que já não “rima” ( Hölderlin); o tempo perplicado, o tempo puro ou reencontrado da arte ( Plotino, Proust); o tempo liberado de sua subordinação ao movimento ( Kant versus Aristóteles); o tempo como Diferença, ou como o Outro ( Platão contra Platão); o tempo como Potência, não como finitude ( Bergson versus Heidegger); o tempo como Fora( Blanchot, Foucault).” P.88

“As bifurcações maiores suscitam no leitor a pergunta: mas, afinal Deleuze concebe o tempo como contração ou como cisão? como dobra ou desdobra? Como um transcendental ou como o virtual? Trata-se de um tempo puro e vazio, ou de um tempo ontológico, pleno de pontos singulares? Tempo reto ou rizomático? Tempo como interioridade ou como exterioridade? Tempo como Todo ou como Fora? Tempo como Forma ou como Potência?”P.88

A dramatização cinematográfica

“As teses maiores de Deleuze sobre o tempo reaparecem de maneira dramatizada em seus livros de cinema, onde conquistaram uma operacionalidade estética que as ilumina em seu conjunto “encadeado”. Tomemos a idéia mais enigmática que organiza esses livros, o tema da emancipação do tempo. “The time is out of joint”, exclama Hamlet. O tempo está fora dos gonzos! O que significa o tempo saído dos eixos, devolvido a si mesmo, o tempo puro e liberado? É um tempo liberado do movimento, isto é, do movimento centrado em torno do seu eixo e encadeado e direcionado conforme a sucessão de seus presentes encaixados. Deleuze alude então a um tempo liberado da tirania do presente que antes o envergava, e disponível, doravante, às mais excêntricas aventuras. Como diz Bruno Schulz em outro contexto, o tempo é um elemento desordenado que só se mantém em disciplina graças a um incessante cultivo, a um cuidado, a um controle, a uma correção dos seus excessos.” P. 88-89

“Schulz, lembra que carregamos uma carga extranumerária que não cabe no trem dos eventos e no tempo de dois trilhos que o suporta. Para esse contrabando precioso, chamado de Acontecimento, existem as faixas laterais do tempo, desvios cegos, onde ficam “suspensos no ar, errantes, sem lar”, num entremeado multilinear, sem “antes nem “depois”, nem “simultaneamente”, nem “por conseguinte”, o mais remoto murmúrio e o mais longínquo futuro comunicando-se num início virginal. Assim, no seio do tempo contínuo dos presentes encadeados (cronos) insinua-se constantemente o tempo amorfo do Acontecimento ( aion), na sua lógica não dialética, impessoal, impassível, incorpórea: “a pura reserva”, virtualidade pura que não pára de sobrevir.” P. 89

“No acontecimento coexistem as pontas de presente desatualizadas, ou ainda um mesmo acontecimento se distribui em mundos distintos segundo tempos diferentes, de modo que, o que para um é passado, para o outro é presente, para um terceiro é futuro – mas é o mesmo acontecimento ( o ano passado em Marienbad) . Tempo sideral ou sistema de relatividade, diz Deleuze, porque inclui uma cosmologia pluralista, no qual um mesmo acontecimento se distribui, em versões incompatíveis, em uma pluralidade de mundos. Eis não um deus que escolhe o melhor dos mundos possíveis, mas um Processo que passa por todos eles, afirmando-os “simultaneamente”. É um sistema de variação: dado um acontecimento, não rebatê-lo sobre um presente que o atualiza, mas fazê-lo variar em diversos presentes pertencentes a mundos distintos, embora num certo sentido, mais genérico, eles pertençam a um mesmo mundo estilhaçado. Ou, dado um presente, não esgotá-lo nele mesmo, encontrar nele o acontecimento pelo qual ele se comunica com outros presentes em outros mundos, mergulhar a montante no acontecimento comum em que estão implicados todos: o Emaranhado Virtual.”. P.89-90

“ Para ficar numa imagem cômoda, o tempo como um lenço: a cada vez que assoamos o nariz, nós o enfiamos no bolso, amarrotando-o e maneira distinta, de forma que dois pontos do lenço que antes estavam distantes e não se tocavam ( como dois momentos da vida, longínquos segundo uma linha do tempo) agora tornam-se contíguos, ou mesmo coincidem, ou , ao contrário, dois pontos em princípio vizinhos agora se afastam irremediavelmente. Como se o tempo fosse uma grande massa de argila, que a cada modelagem rearranja as distâncias entre os pontos nela assinalados. Curiosa topologia em que assistimos a uma transformação incessante, modulação, que reinventa e faz variar as relações entre vários lençóis e seus pontos cintilantes, cada rearranjo criando algo novo, memória plástica, sempre refeita, sempre por vir.” P.90

“Massa do tempo modelável, ou melhor, modulável, e sobre a qual Deleuze chega até a exclamar, como um Cristóvão Colombo: é a terra, meio vital lamacento!” P.90

“O tempo passa então a ser concebido não mais como linha, mas como emaranhado, não como rio, mas como terra, não fluxo, e sim massa, não sucessão, porém coexistência, não um circulo, mas turbilhão, não ordem, e sim variação infinita, de modo que não se trata mais de remetê-lo a uma consciência – a consciência do tempo -, mas à alucinação. Enlouquecimento desse tempo fora dos eixos, não sem relação com o tempo daqueles que, fora dos eixos, são ditos loucos.” P.91


Tempo e loucura
“Sempre que fala do tempo, Deleuze evoca um desregramento: tempo descentrado, aberrante, selvagem, paradoxal, flutuante, ou mesmo afundado. Não parece abusivo considerar que o enlouquecimento do tempo tal como Deleuze o trabalha comunica-se diretamente com a temporalidade da loucura dita “clinica”. P.91

“De modo que há uma imanência caótica que é recusada em nome de um alhures significante precisamente não assumível pelo psicótico. Enfim, toda uma apologia da historicização, cujo ponto de apoio é o eu historiador, como diria Piera Aulagnier. Assim, de algum modo a temporalidade acaba sendo identificada à historicização. Com tudo o que essa perspectiva possa apresentar de interessante, ou útil, e até de necessária na clinica, ela tem o inconveniente de dificultar o acolhimento dos devires à história”. P . 91
“Deleuze o diz claramente: a História é um marcador temporal do poder. As pessoas sonham em começar do zero, e também temem aonde vão chegar, ou cair. Sempre buscamos a origem e o desfecho de uma vida, num vicio cartográfico, mas desdenhamos o meio, que é uma antimemória, que é onde se atinge a maior velocidade. Esse meio é justamente onde os mais diferentes tempos se comunicam e se cruzam, onde está o movimento, a velocidade, o devir, o turbilhão, diz Deleuze literalmente.” P.92

“E a pergunta que se impõe é simples: de que figura temporal dispomos para pensar esse meio turbilhonar, ou a desterritorialização como primeira, ou a multiplicidade virtual? De qualquer modo, não deveria deixar de intrigar-nos o fato de que certos fenômenos de perseguição psíquica expõem, mais do que quaisquer outros, a virtualidade pura enquanto virtualidade, descolada principalmente de qualquer atualização centrada ou orientada, abrindo-se para incongruências temporais diversas, que também o cinema, a seu modo, não cansou de explorar desde o início.” P . 92

Imagem de Tempo
“O cinema teria servido a Deleuze, como sugerimos acima, para revelar determinadas condutas de tempo, dando delas imagens diversas, evolutivas, circulares, espiraladas, declinantes, quebradas, salvadoras, desembestadas, ilocalizadas, multivetoriais. Tempo como bifurcação, defasagem, jorramento, oscilação, cisão, modulação, etc.” P.92

“O pensamento e o tempo estariam assim, desde logo, numa relação de co-pertinência indissolúvel. Com efeito, o que se depreende dos textos de Deleuze a respeito do tempo é que o próprio pensamento não poderia permanecer alheio ao projeto de liberar-se de uma certa ideia de tempo que o formatou, bem do eixo que o encurva.” P.92

“Assim, como critica uma imagem do pensamento dita dogmática, Deleuze fustiga uma imagem de tempo hegemônica. Ao reivindicar um pensamento sem imagem, para que possam advir outras imagens ao pensamento, Deleuze também reclama um tempo sem imagem, para que se liberem outras imagens do tempo.”P.93

“ Mas qual seria a imagem de tempo recusada por Deleuze? Para irmos rápido, diremos: é a do tempo como círculo. Não se trata propriamente de um tempo circular, mas do círculo como uma estrutura profunda, em que o tempo se reconcilia consigo mesmo, em que começo e fim rimam, como diz Hölderlin. O que caracteriza o círculo é a sua monocentragem em torno do presente, de seu Movimento encadeado, orientado, bem como sua totalização subjacente. O círculo, com seu centro, metáfora do Mesmo. E, ainda que o presente se situe num passado remoto e nostálgico, ou num futuro escatológico, nem por isso deixa de continuar funcionando como eixo que encurva o tempo, em torno do qual ele gira, redesenhando o círculo do qual pensávamos ter escapado. Trata-se aí, em última instancia, ainda e sempre, do tempo da Re-presentação.” P.93

“ O que vem a ser o tempo, quando ele passa a ser pensado enquanto multiplicidade pura ou operando numa multiplicidade pura? O rizoma temporal não tem um sentido ( o sentido da flecha do tempo, o bom sentido, o sentido do bom senso, que vai do mais diferenciado ao menos diferenciado), nem reencontra uma totalidade prévia que, abolido-se, ele se encarregaria de explicar no conceito. Ele não possui um sentido e é alheio a qualquer teleologia.” P.93

Imagem do Tempo, imagem do pensamento
 “ Tudo muda de um para outro. Deleuze diz que são dois planos de imanência diferentes, o clássico e o moderno, o da vontade de verdade, por um lado, e o da criação, por outro.” P.95

“Deleuze assinala três momentos distintos: tempo como anterioridade (na reminiscência platônica, a verdade pressuposta como imagem virtual de um já pensado que redobra todo conceito), tempo como instantaneidade (no inatismo cartesiano, o tempo é expulso do conceito: entre a ideia e a alma que a forma enquanto sujeito, toda distância temporal é anulada), tempo como forma da interioridade( o tempo reintroduzido por Kant no sujeito, e cindindo-o). (...) . O Tempo posto no conceito, o tempo expulso do cogito, o tempo reintroduzido no Cogito, o tempo reintroduzido no sujeito, mas como fissura ou variação.” P.96




2 comentários:

  1. Oi! Você tem a tese do Peter Pál Pelbart em pdf? Preciso muito! Abraço

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  2. Oi! Você tem a tese do Peter Pál Pelbart em pdf? Preciso muito! Abraço

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