segunda-feira, 5 de outubro de 2009

Sobre a brevidade da vida - Sêneca


SÊNECA, Lúcio A. Sobre a brevidade da vida. Tradução e notas Willian Li. – São Paulo: Editora Nova Alexandria, 1993. 79 páginas.

"Deve-se aprender a viver por toda a vida, e , por mais que tu talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer". (VII, 4). P.34

domingo, 4 de outubro de 2009

O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a História - Ivan Domingues

 
DOMINGUES, Ivan. O fio e a trama: reflexões sobre o tempo e a História.São Paulo: ed. Iluminuras, 1996. 254 Páginas.

A experiência do tempo e da História:
A intuição do efêmero reveste a experiência humana do tempo;
Dois operadores hermenêuticos para se pensar o tempo:

1. Intuição do efêmero;

2. Desejo de eternidade.

O poder nefasto do tempo:

“Uma disposição profunda da natureza humana que, qual uma carapaça, está aparelhada não propriamente para integrar e assimilar o tempo, mas para barrá-lo e subtrair-se dele, sob pena de nele desintegrar-se por completo”. P.20

Integram-se esses dispositivos:

1. Instinto

2. Hábito

3. Memória

4. Esquecimento

5. Consciência

Instinto: Puro automatismo, sem relação com o passado – mera repetição com o presente (segundo Alquie).

Hábito: Passado pensado sobre o presente e fixado no presente.

Função de ambos:

1. Negar a mudança;

2. Elevar-se contra o devir;

3. Instalar uma ordem no tempo;

4. Fixidez no modo de ser dos homens.

“Dá origem ao que os gregos chamam de ÉTHOS – segunda natureza em que os homens se põem ao abrigo da ação do tempo e da atividade desintegradora da história”.P.12

Memória: A faculdade do eterno e do presente, que conserva o passado no presente e o faz aderir a nós, a ponto de confundir conosco – através de uma resistência – reconcilia-se com a História – abre-se ao passado morto.

Esquecimento: Faculdade de apagar o tempo que empalidece para que os homens possam suportar a existência – se esforça por se esquecer e apaga da memória tudo aquilo que cai no tempo e traz o selo de sua ação corrosiva: o novo, o imprevisto, o efêmero.

Consciência: Faculdade do eterno. Desprende-se da cadeia temporal – marcha de frente para trás ou de trás para frente, desafiando toda cronologia.

1) Pondo-se no passado, instalando-se no futuro, refugiando-se no presente;

2) A linguagem é uma extensão da consciência e da memória;

3) Assim como as instituições: Estado, economia, religiões, etc.

4) Ela é adquirida segundo Piaget, na infância – a partir dos 7 anos;

5) Dá a capacidade de notarmos a individualidade e a caducidade das coisas.

“O homem não pode representar o tempo, menos ainda a ação do tempo, a não ser indiretamente, por meio das coisas e do efeito dos mesmos sobre elas”. P. 22

1) A memória coletiva funciona mediante estruturas diferentes: categorias ao invés de acontecimentos, arquétipos ao invés de personagens históricos.

2) O mito retira a ação do personagem histórico ao assimilá-lo ao modelo de arquétipo (herói) e o acontecimento integra-se a categoria de ação mítica (façanha).

“ Memória coletiva é a-histórica: além de não conferir nenhuma importância às lembranças pessoais, ela não retém os acontecimentos e as individualidades históricas senão a medida que os transforma em arquétipos, isto é, na medida em que ela anula todas as particularidades históricas e pessoais.” P.22

Três notas que qualificam simultaneamente o tempo sagrado e profano:

REALIDADE - CONTINUIDADE - REVERSIBILIDADE

MITO            -    RITO                    -    TEMPO

“Sendo assim, habitado por potências sobrenaturais que agem sobre o curso das coisas e o mundo dos homens, o tempo é uma realidade concreta e sua ação afeta os homens e as coisas; nutridos por forças anímicas que dão vida as coisas e permitem a continuidade do mundo, o tempo é um continuum e seu sentido duração; por fim, podendo ter seu curso suspenso e revertido, ligando o fim à origem e o resultado ao começo, o tempo, além de contínuo, é reversível repetição do ciclo e do eterno retorno.” P .23

* Reversibilidade do tempo – tempo circular;

* Arquétipos de repetição - o homem arcaico elabora a experiência do tempo e confere sentido à história.

“A desvalorização e anulação não levam à perda do real e à eliminação do tempo, mas a instalação de uma realidade e de uma temporalidade superiores;a ordem da eternidade; instalada não fora do tempo, mas no tempo, no tempo sagrado das origens (“In illo tempore, abe origine”)”.P.25

“ Os gregos, não satisfeitos, tratam de ampliar o léxico do tempo, com a introdução de termos que traduzem novos aspectos da experiência da temporalidade e, assim, modalizam o tempo”. P.29

CRONOS da teologia Órfica – tempo que não envelhece, imortal, imperecível e eterno;

* Os judeus e cristãos lidavam com a figura do tempo linear;

* Os gregos não só conheciam a figura do tempo circular, mas que coexistiam um tanto conflitiva, três figuras de temporalidade:

1. O tempo circular do eterno retorno.

2. Homérico-hesíoda – tempo que é co-extensivo ao mundo e é de alguma forma filho dele.

3. Órfica – tempo que preexiste ao mundo e está na origem dele, como o pai na do filho. Um tempo não franqueado aos homens, que nascem, crescem e morrem sem conseguirem juntar o começo e o fim do tempo.

OKEANÓS: rio que escoa sem cessar e arrasta tudo atrás de si, em seu leito insaciável de morte. “O deus que engole seus próprios filhos e o próprio tempo, o tempo insaciável de anos que consome todos que nele se escoam”. P.31

AIÓN: palavra que acabou por designar a duração da vida, a idade ou a geração. Para Platão e outros pensadores posteriores passou a designar também a eternidade.

Homero usa duas palavras importantes:

ÊMAR: utilizada para designar o dia;

HÓRA: Usada para designar as estações do ano, seja o momento que convém a uma ação ou a uma atividade, como o momento de fazer um relato, o tempo de um casamento. P.31

KAIROS (καιρός): Uso corrente nos sofistas, designando o instante privilegiado, o momento mais oportuno para tomar uma decisão e desencadear uma ação. P.31

As inovações dos gregos –figuras de temporalidade e o campo semântico do tempo – nos ajudam a compreender o aprofundamento da experiência e da temporalidade. Sem falarmos no arquétipo de repetição. A ideia de efêmero, por exemplo, é conhecida pelos gregos – EPHEMEROS – o que dura um dia.

Sófocles em o “Édipo em Colona”:

“Somente os deuses estão livres da velhice e da morte, todas as coisas, afora eles, estão envoltas pelo tempo soberano. A força da terra se esgota, o vigor do corpo se esgota; a confiança enfraquece, a desconfiança floresce...” P.32

1. Os gregos buscaram evadir-se do tempo através de um plano superior da realidade em que se pudessem pôr ao abrigo de suas penas e fadigas: a ordem da eternidade.

2. A concepção de tempo helenístico – romana: cíclico e circular

3. Judaico-cristã: tempo linear em que acontecimentos fundadores – únicos e irreversíveis – são lembrados cotidianamente pelo crente ao ler o livro sagrado.

Passemos a discutir o campo semântico da temporalidade. Três palavras latinas conhecidas dos eruditos e retóricos romanos são retomadas pelos pais da igreja. Com elas procurou-se designar certos aspectos e modulações do tempo:

1. TEMPUS: Dá a ideia de duração, frações ou porções de tempo, tais como as monções de época, período, hora, instante, estação do ano. Também indica momento favorável, oportunidade, ocasião próxima ao sentido do Káiros grego;

2. AETERNITAS (subst) ou AETERNUS(adj): Empregado para designar a eternidade, na concepção indefinida no tempo. Utilizada pelos cristãos para designar uma ordem transcendente ao tempo.

3. AEVUM: Utilizada pelos romanos para designar a acepção de tempo em sua duração continuada e ilimitada ( Horácio) até partes ou frações de tempo – época, idade,geração (Tito Lívio). Os cristãos utilizavam-no como ordem intermediária entre o tempo e a eternidade. Exemplo de São Tomás, que alojava no (Aevum) os anjos.

4. KAIROS: Assume, ao contrário dos sofistas (utilizavam-no como de sentido de “ocasião favorável para tomada de decisão e a deflagração de uma ação”). Mas para os cristãos, indica o instante primordial a depender da escolha e da decisão de Deus – um futuro decidido no presente, em cristo. O Káiros, para os cristãos, assume não a ruptura com o presente – mas a utilização dele para conquistar a eternidade. Então o presente é a extensão mítica para o eterno, ou seja, Deus.

“O tempo não pode apagar o passado, também não pode apagar a si próprio, por isso é irreversível.Mas, sendo a sua duração limitada na duração ilimitada do eterno”. P.37-38

A modernidade é a época que o registro do tempo, dilatado – tanto em extensão e em profundidade – causa um paroxismo:
1. Ainda vivemos no tempo que flui, com seus imprevistos, males e sofrimentos – decadência dos corpos, erosões das instituições, etc.
2. A experiência do domínio ou do controle do homem sobre o tempo – instrumentos de medidas precisos que racionalizam o trabalho.

Uma fração considerável do devir temporal se determina como um meio neutro a disposição dos homens. Controlada pelo homem, porém se segmenta, se instrumentaliza e se contabiliza – tempo da ciência e da técnica. No mesmo espaço que se dissocia do tempo do mundo (tempo cotidiano) interage com ele.

“Tais experiências são parecidas e têm mais de um ponto de contato com a dos gregos e dos medievais, é verdade, mas no obstante, delas diferem em diversos aspectos e em outros tantos pontos, atestando um conjunto de inflexões e rupturas, de que resulta algo novo e , como tal, pode-se dizer totalmente desconhecido de ambos, a saber: a laicização do tempo, o esvaziamento de suas potências “ noturnas” e a transferência de seus poderes aos homens; a imanentização do eterno ao tempo e a instalação do tempo ao absoluto na História, a emergência do prometeismo associado ao projeto de dominação da natureza e de controle da sociedade; o impulsionamento da técnica vinculada a racionalização do mundo do trabalho e dos negócios; o gosto pela novidade e a deificação do efêmero, etc – estão bem lá a testemunhá-lo”. P.39-40

Hotel do Tempo - Brasigóis Felício


FELÍCIO, Brasigóis. Hotel do Tempo. Ed: Civilização brasileira, 1981. 247 páginas.

Biografia do autor: http://palavrarte.sites.uol.com.br/Equipe/equipe_brasigois.htm

Temporal humano
O tempo, impassível, assiste
escorrer com mel e sangue
a nossa trágica humanidade.
Somos a carnes
e a pressentimentos.
Mas tem um medo atróz,
que nos torna fugitivos
das noites mais escuras
dos que bebem, e ficam loucos.

II

Ao tempo, não importa
o pôdre ou a porta que existam
em nossas víceras:
age somente sobre o tempo e os ossos.
( O brilho dos olhos já nem aparece
em certo mortos-vivos que conheço).
As línguas de sal e os presságios
a vida, imersa e sobrevivente
da noite de mil anos, um oceano de sangue
onde se afoga o animal humano,
em riste e triste.

III

Máquina de medo e simulação.
Painel de maravilhas
e de crimes hediondos
a vida, jaz, assassinada
e sobrevive ainda
nas víceras dos vivos rescendendo
a fezes e eternidade.
(Páginas 63-64).


Viagem abissal

Fôsse sempre este silêncio
e a paz eu abitaria, definitivo.
Fôsse sempre essa entrega
às coisas que passam,
no dorso do tempo.
Só, como poderia estar
um vivo humano,
numa paz absoluta
só de quem está morrendo
e deixa de lutar
contra a noite
e a luz que o envolve,
eu habito o que me habita:
a quietude das coisas
garuejando
nos tendões do vento.
Que venha a morte,
e me convoque quando quiser
- já não a temo
desde o dia antigo em que a busquei
nos rios, e no silêncio
e só a vida eu encontrei em tudo.
Que venham a mim
todas as vozes que me chamam:
seja isto
a pura alegria dos anjos
ou os gemidos do sangue, e dos demônios.
(Página 108).

O Tempo e os olhos

Veio a chuva, veio o tempo
no dorso nu da memória
com sua carga
de limo e de espera.
O tempo veio, e levou
sua ferrugem, e os ossos
e o que restou, em ruínas
da nossa busca de escombros:
essa aventura inútil.
O tempo veio, e ficou
nos ossos dos despojados
e no sangue que estocou.
(Página 158).


O tempo e os ossos
Não sou nenhum mago
mágico ou médico de dementes
para saber das coisas do tempo
como sabem da morte e da vida,
intensamente,
os que estão doentes.
Não sou nenhum idólatra
na solidão que rói meus ossos
e range e ruge como um bicho
nos meus olhos
se uma estrada me espera
e no tempo são seis horas.

Não sou, não serei nunca um visionário
a não ser pobre advinho do meu transe
e um que sabe dos limites
e mesmo se entregando
não esqueceu jamais que é um corpo.
Por isso doem tanto os fins de tarde
as noites no início,
e as crianças sorrindo
uma hora antes de morrer.
Por isso. Só por isso me entrego
ao tumulto dos butecos
e de vez em quando me permito passear dentro da noite,
como um louco.

Não sou, repito, nenhum idólatra
da solidão que rói meus ossos
por isso. Só por isso busco tanto
nas vísceras e no tempo
a minha fragilidade
e o meu poder de esquecimento.
(Página 207).







sábado, 3 de outubro de 2009

Deleuze, a arte e a filosofia - Roberto Machado



MACHADO, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. Zahar editores: Rio de Janeiro, 2009. 340 Páginas.

“Seu pensamento não se restringe à consideração do texto filosófico: fazer filosofia é muito mais que do que repetir ou repensar filósofos. Quando, porém, ele estuda o discurso científico ou as expressões artísticas e literárias, jamais tem por objetivo fazer filosofia das ciências, das artes ou da literatura. Pois, para ele, a filosofia não é uma reflexão sobre a exterioridade da filosofia, uma reflexão sobre domínios ou áreas extrínsecas ao discurso filosófico; ela é um processo de criação. “Não creio que a filosofia seja uma reflexão sobre alguma coisa, como a pintura ou cinema...Não se trata de refletir sobre o cinema...O cinema não é para mim um pretexto ou um domínio de aplicação. A filosofia não está em estado de reflexão externa sobre outros domínios, mas em estado de aliança ativa e interna entre eles, e ela não é nem mais abstrata, nem mais difícil.(...) Quando se vive em uma época pobre, a filosofia se refugia em uma reflexão ‘sobre’...Se ela nada cria, que mais pode fazer senão refletir sobre?... De fato, o que interessa é retirar do filósofo o direito à reflexão sobre. O filósofo é criador e não reflexivo.” P.11-12

“O que Deleuze chama de devir do conceito é essa a conexão tanto dos elementos de um conceito quanto dos diferentes conceitos em um mesmo sistema conceitual; é o fato que os conceitos se coordenam, se conectam, se compõem, se aliam numa determinada filosofia, mesmo que tenham histórias diferentes. Assim, ele distingue devir e história de um conceito. Dizer que um conceito tem uma história significa que ele não é criado do nada; foi preparado por conceitos anteriores ou alguns componentes desse conceito vêm de conceitos de outros filósofos, embora ele permaneça original”.P. 16-17.

“Para Kant, se o “eu penso”é uma determinação que implica uma existência indeterminada “eu sou”,ainda não se sabe como esse indeterminado é determinável, nem sob que forma ele aparece como determinado. Portanto, não se pode dizer, como Descartes, “eu sou uma pessoa pensante”. Por que Kant pode dizer isso? Porque introduz um novo componente no cogito , o tempo como forma da interioridade, defendendo que só no tempo minha existência indeterminada é determinável.” P.17


“A crítica Kantiana consiste em negar um encadeamento entre os dois termos e propor o terceiro.Esse terceiro termo é a forma sob a qual o indeterminado é determinável pela determinação: a forma do tempo. O que muda, então, com a introdução do tempo no cogito? Que a existência do “eu penso”só é determinável no tempo, portanto como um eu fenomenal, receptivo e mutante, porque o tempo é uma forma de intuição, que é sensível, e não intelectual, como o “eu penso”, que Kant chama de forma de apercepção: o tempo é a forma sob qual a intuição de nosso estado interno torna-se possível. O tempo “só nos representa à consciência como nos aparecemos e não como somos em nós mesmos porque só nos intuímos como somos internamente afetados...”. Assim, o eu transcendental é distinto do eu fenomenal, porque o tempo os distingue no interior do sujeito.” P.17


continua....

quinta-feira, 24 de setembro de 2009

O Tempo – Cláudio Ulpiano



Aula 4 em áudio – a partir do minuto 12: 30. Retirado do site: http://www.claudioulpiano.org.br/
O tempo

“Quando eu não penso o tempo, daí eu entendo o tempo”. Santo Agostinho.

O homem comum tem só uma representação do tempo – passado, presente, futuro. A busca de uma representação do tempo torna um obstáculo ao entendimento dele. O tempo ao ser associado ao pensamento, não pode ser dito como é dita a representação do tempo. Se eu começo a pensar o tempo, vou começar a descobrir, que o tempo se constituem de múltiplos corredores, uma quantidade quase que indefinida de finidade de planos. Que não segue a trilha clássica da representação – ele vai e vem, rupturas, zigue-zagues, etc. Não é regido por princípios, por exemplo: princípio da não contradição.

O pensamento rompe com a representação que temos de tempo, ou seja, passado, presente, futuro. Toda questão nesse fim de século – todas as práticas das experimentações da filosofia e da ciência são um mergulho nas representações. Toda prática da filosofia se desenvolve, manifesta, relaciona com o tempo. Uma relação que não é reprodução e o modelo do tempo banal com a qual nós vivemos.

Temos uma dificuldade muito grande em sair das nossas próprias representações. Pois ela dá a sensação de segurança, e nós ficamos envolvidos por ela ao qual dá uma garantia pra nossa vida. Ou uma suposta garantia.

Quando rompemos com a representação do tempo, ocorre dois fatores:

I. EFEITO EXISTÊNCIAL:

Vai abalar a nossa maneira de viver quando confrontado com a nossa representação, ou não, pois estamos “vacinados” contra essa representação, ao que nos dá uma sensação de satisfação.

II. EFEITO DE FUGA:

Abandonar a superfície clara da razão humana, pois ela sempre supôs que para ela funcionar ela precisa de uma superfície clara ao penetrar no mundo do tempo, que nos causa um atordoamento (choque, golpe). Começamos a nos surpreender do que é a vida.

Existe um pintor chamado Debuff, em que para ele todas as representações são meras ficções, no sentido que a realidade é constituído de movimentos super velozes de moléculas que nós não aprendemos. Ela é constituída de coisas que não tem nada haver com a nossa realidade/ representação.

Toda a representação do tempo, espaço, diâmetro, sucessões, etc. É produto do nosso organismo. Para poder passar, ele constrói uma representação segundo o seu modelo. Nós estamos numa representação orgânica do mundo, significa que fazemos do mundo uma representação. O organismo projeta um cosmos racionalmente organizado, ele tem uma ordem racional semelhante à física de Newton – nós possuímos uma razão para dar conta desse cosmo. O homem está permanente a natureza, segundo um modelo da sua representação orgânica, segundo Nietzsche – uma humanização da natureza (projeções das representações humanas).

Uma representação não cria mais nada.


O mundo do caos se torna uma potência criadora e criativa onde nós mergulhamos no regime dos possíveis. Quando estamos no sonho, as dimensões do tempo se perdem, e ao acordarmos, pensamos: onde estou? Logo nos localizamos e começamos a produzir.

Quando confrontados com o caos, ou podemos fugir – não querendo saber dele – ou procuramos outros agenciamentos, como a religião, para poder dar conta do medo.

Devemos saber que as práticas criativas são um mergulho no caos.

A arte Gótica é a natureza caótica. Em cima dessa natureza, o homem constrói qualquer coisa que sirva para ele. O gótico da liberdade para o experimentador poder criar e inventar os sentidos que o caos constitui.

Todos estamos afundados no caos, em que nós só conseguimos elaborar alguma coisa nele, a partir da nossa maneira de representar o Tempo – uma tentativa de organizar o caos.

A nossa vida prolonga outras vidas, as nossas teorias prolongam outras teorias.

O artista não é aquele que cria do nada, ele apenas renova.

Um psicótico ou esquizofrênico vive em outro tempo, outra representação, ele acaba perdendo o eixo. Ele sempre pergunta: que horas são? É uma busca por referência.

Pensar o Tempo é pensar o corpo que está afundado no Tempo.

Quando o pensamento volta a pensar o seu corpo ele volta a pensar as categorias da vida: são os afetos do corpo.

Cada corredor que penetramos é um novo mundo que aparece na nossa frente.

Mergulho no Tempo é o mergulho no mundo dos possíveis.



quarta-feira, 23 de setembro de 2009

A interpretação das culturas - Clifford Geertz



GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Editora: LTC – Livros técnicos e Científicos. Rio de Janeiro. 1989


Capitulo 2: O impacto do conceito de cultura sobre o conceito de homem

“A perspectiva iluminista do homem era, naturalmente, a de que ele constituía uma só peça com a natureza e partilhava da uniformidade geral de composição que a ciência natural havia descoberto sob o incitamento de Bacon e a orientação de Newton.” (P.25)

“A enorme e ampla variedade de diferenças entre os homens, em crenças e valores, em costumes e instituições, tanto no tempo como de lugar para lugar, é essencialmente sem significado ao definir sua natureza. Consiste em meros acréscimos, até mesmo distorções, sobrepondo e obscurecendo o que é verdadeiramente humano — o constante, o geral, o universal — no homem.”(P.26)

“Assim, numa passagem hoje notória, Dr. Johnson viu que o gênio de Shakespeare residia no fato de que “ seus caracteres não são modificados pelos costumes de determinados lugares, não-praticados pelo restante do mundo; pelas peculiaridades dos estudos ou profissões seguidas por pequeno número de pessoas, ou pelos acidentes de modas passageiras ou opiniões temporárias”. E Racine via o sucesso de suas peças ou temas clássicos como prova de que “o gosto de Paris..,combina com o de Atenas: meus espectadores foram tocados pelas mesmas coisas que, em outros tempos, levaram lágrimas aos olhos das classes mais cultas da Grécia”. ( P.26)

“ O problema com esse tipo de perspectiva.(...) é que a imagem de uma natureza humana constante, independente de tempo, lugar e circunstância, de estudos e profissões, modas passageiras e opiniões temporárias, pode ser uma ilusão, que o que o homem é pode estar tão envolvido com onde ele está, quem ele é e no que ele acredita, que é inseparável deles. É precisamente o levar em conta tal possibilidade que deu margem ao surgimento do conceito de cultura e ao declínio da perspectiva uniforme do homem. O que quer que seja que a antropologia moderna afirme — e ela pa ter afirmado praticamente tudo em uma ou outra ocasião —, ela tem a firme convicção de que não existem de fato homens não-modificados pelos costumes de lugares particulares, nunca existiram e, o que é mais importante, não o poderiam pela própria natureza do caso.” (P.26)

“Essa circunstância faz com que seja extraordinariamente difícil traçar uma linha entre o que é natural, universal e constante no homem, e o que é convencional, local e variável. Com efeito, ela sugere que traçar tal linha é falsificar a situação humana, ou pelo menos interpretá-la mal, mesmo de forma séria.”(P.27)

“ É entre interpretações como essas, todas insatisfatórias, que a antropologia tem tentado encontrar seu caminho para um conceito mais viável sobre o homem, no qual a cultura e a variabilidade cultural possam ser mais levadas em conta do que concebidas como capricho ou preconceito e, no entanto, ao mesmo tempo, um conceito no qual o princípio dominante na área, “a unidade básica da humanida de”, não seja transformado numa expressão vazia.” (P.27)

“Alimentar a idéia de que a diversidade de costumes no tempo e no espaço não é simplesmente uma questão de indumentária ou aparência, de cenários e máscaras de comediantes, é também alimentar a idéia de que a humanidade é tão variada em sua essência como em sua expressão.” (P.27)

“Para a imagem do homem do século XVIII, como o racional nu que surgiu quando ele se despiu dos seus costumes culturais, a antropologia do final do século XIX e início do século XX substitui a imagem do homem como do animal transfigurado que surgia quando ele novamente se vestia com esses costumes.” (P. 28)

“Ao nível da pesquisa concreta e da análise específica, essa estratégia grandiosa desceu, primeiro, a uma caçada por universais na cultura, por uniformidades empíricas que, em face da diversidade de costumes no mundo e no tempo, podiam ser encontradas em todo o lugar em praticamente a mesma forma e, segundo, a um esforço para relacionar tais universais, uma vez encontrados, com as constantes estabelecidas de biologia, psicologia e organização social humanas.” ( P.28)

“Em essência, essa não é certamente uma idéia nova. A noção de um consensus gentium (um consenso de toda a humanidade) — a noção de que há algumas coisas sobre as quais todos os homens concordam como corretas, reais, justas ou atrativas, e que de fato essas coisas são, portanto, corretas, reais, justas ou atrativas — estava presente no iluminismo e esteve presente também, em uma ou outra forma, em todas as eras e climas.” ( P.28)

“ O fato de que em todos os lugares as pessoas se juntam e procriam filhos têm algum sentido do que é meu e do que é teu, e se protegem, de alguma forma, contra a chuva e o sol não é nem falso nem sem importância, sob alguns pontos de vista. Todavia, isso pouco ajuda no traçar um retrato do homem que seja uma parecença verdadeira e honesta e não urna espécie de caricatura de um “João Universal”, sem crenças e credos.”( P.29)

“Meu ponto de vista, que deve ser claro e, espero, logo se tornará ainda mais claro não é que não existam generalizações que possam ser feitas sobre o homem como homem, além da que ele é um animal muito variado, ou de que o estudo da cultura nada tem a contribuir para a descoberta de tais generalizações. Minha opinião é que tais generalizações não podem ser descobertas através de uma pesquisa baconiana de universais culturais, uma espécie de pesquisa de opinião pública dos povos do mundo em busca de um consensus gentium que de fato não existe e, além disso, que as tentativas de assim proceder conduzem precisamente à espécie de relativismo que toda a aborda em se propunha expressamente evitar.”(P.29)

“Os universais culturais são concebidos como respostas cristalizadas a essas realidades inevitáveis, formas institucionalizadas de chegar a termos com elas.” (P.31)

“Novamente o problema aqui não é tanto se, de uma forma geral, essa espécie de congruência existe, mas se ela é maior do que uma congruência frouxa e indeterminada. Não é difícil relacionar algumas instituições humanas ao que a ciência (ou o senso comum) nos diz serem exigências para a existência humana, mas é muito mais difícil afirmar essa relação de forma inequívoca. Qualquer instituição serve não apenas uma multiplicidade de necessidades sociais, psicológicas e orgânicas (de forma que dizer que o casamento é mero reflexo da necessidade social de reprodução, ou que os hábitos alimentares são mero reflexo das necessidades metabólicas, é fazer uma paródia), mas não há qualquer modo de se afirmar, de forma precisa e testável, quais as relações interníveis que se supõe manter-se.” (P.31)

“A despeito do que possa parecer, não há aqui uma tentativa sé ria de aplicar os conceitos e teorias da biologia, da psicologia ou até mesmo da sociologia à análise da cultura (e, certamente, nem mesmo uma sugestão do inverso), mas apenas a colocação, lado a lado, de fatos supostos dos níveis cultural e subcultural, de forma a induzir um sentimento vago de que existe uma espécie de relação entre eles — uma obscura espécie de “modelagem”. Não há aqui qualquer integração teórica, mas uma simples correlação, assim mesmo intuitiva,de achados separados. Com a abordagem de níveis não podemos jamais, mesmo invocando “pontos invariantes de referência”, construir interligações funcionais genuínas entre os fatores cultural e não- cultural, apenas analogias, paralelismos, sugestões e afinidades mais ou menos persuasivas.”( P.31)

“A principal razão pela qual os antropólogos fogem das particularidades culturais quando chegam à questão de definir o homem, procurando o refúgio em universais sem sangue, é que, confrontados como o são pela enorme diversidade do comportamento humano, eles são perseguidos pelo medo do historicismo, de se perderem num torvelinho de relativismo cultural tão convulsivo que poderá privá-los de qualquer apoio fixo.” ( P. 32)

“A noção de que, a menos que um fenômeno cultural seja empiricamente universal, ele não pode refletir o que quer que seja sobre a natureza do homem é tão lógica como a noção de que, porque uma anemia celular não é, felizmente, universal, ela nada nos pode dizer sobre os processos genéticos humanos.” ( P.32)

“Resumindo, precisamos procurar relações sistemáticas entre fenômenos diversos, não identidades substantivas entre fenômenos similares. E para consegui-lo com bom resultado precisamos substituir a concepção “estratigráfica” das relações entre os vários aspectos da existência humana por uma sintética, isto é, na qual os fatores biológicos, psicológicos, sociológicos e culturais possam ser tratados como variáveis dentro dos sistemas unitários de análise. O estabelecimento de uma linguagem comum nas ciências sociais não é assunto de mera coordenação de terminologias ou, o que é pior ainda, de cunhar novas terminologias artificiais. Também não é o caso de impor um único conjunto de categorias sobre a área como um todo. É uma questão de integrar diferentes tipos de teorias e conceitos de tal forma que se possa formular proposições significativas incorporando descobertas que hoje estão separadas em áreas estanques de estudo.”(P.32)

“Na tentativa de lançar tal integração do lado antropológico e alcançar, assim, uma imagem mais exata do homem, quero propor duas idéias. A primeira delas é que a cultura é melhor vista não como complexos de padrões concretos de comportamento — costumes, usos, tradições, feixes de hábitos —, como tem sido o caso até agora, mas como um conjunto de mecanismos de controle — planos, receitas, regras, instruções (o que os engenheiros de computação chamam “programas”) — para governar o comportamento. A segunda idéia é que o homem é precisamente o animal mais desesperadamente dependente de tais mecanismos de controle, extragenéticos, fora da pele, de tais programas culturais, para ordenar seu comportamento. ( P.32)

“A partir de tais reformulações do conceito da cultura e do papel da cultura na vida humana, surge, por sua vez, uma definição do homem que enfatiza não tanto as banalidades empíricas do seu comportamento, a cada lugar e a cada tempo, mas, ao contrário, os mecanismos através de cujo agenciamento a amplitude e a indeterminação de suas capacidades inerentes são reduzidas à estreiteza e especificidade de suas reais realizações. Um dos fatos mais significativos a nosso respeito pode ser, finalmente, que todos nós começamos com o equipamento natural para viver milhares de espécies de vidas, mas terminamos por viver apenas uma espécie.” ( P. 33)

“A perspectiva da cultura como “mecanismo de controle” inicia-se com o pressuposto de que o pensamento humano é basicamente tanto social como público — que seu ambiente natural é o pátio familiar, o mercado e a praça da cidade. Pensar consiste não nos “acontecimentos na cabeça” (embora sejam necessários acontecimentos na cabeça e em outros lugares para que ele ocorra), mas num tráfego entre aquilo que foi chamado por G. H. Mead e outros de símbolos significantes — as palavras, para a maioria, mas também gestos, desenhos, sons musicais, artifícios mecânicos como relógios, ou objetos naturais como jóias — na verdade, qualquer coisa que esteja afastada da simples realidade e que seja usada para impor um significado à experiência. Do ponto de vista de qualquer indivíduo particular, tais símbolos são dados, na sua maioria. Ele os encontra já em uso corrente na comunidade quando nasce e eles permanecem em circulação após a sua morte, com alguns acréscimos, subtrações e alterações parciais dos quais pode ou não participar. Enquanto vive, ele se utiliza deles, ou de alguns deles, às vezes deliberadamente e com cuidado, na maioria das vezes espontaneamente e com facilidade, mas sempre com o mesmo propósito: para fazer uma construção dos acontecimentos através dos quais ele vive, para auto-orientar-se no “curso corrente das coisas experimentadas”, tomando de empréstimo uma brilhante expressão de John Dewey.” ( P.33)

“O homem precisa tanto de tais fontes simbólicas de iluminação para encontrar seus apoios no mundo porque a qualidade não-simbólica constitucionalmente gravada em seu corpo lança uma luz muito difusa. Os padrões de comportamento dos animais inferiores, pelo menos numa grande extensão, lhes são dados com a sua estrutura física; fontes genéticas de informação ordenam suas ações com margens muito mais estreitas de variação, tanto mais estreitas e mais completas quanto mais inferior o animal.” (P.33)

“Quanto ao homem, o que lhe é dado de forma inata são capacidades de resposta extremamente gerais, as quais, embora tornem possível uma maior plasticidade, complexidade e, nas poucas ocasiões em que tudo trabalha como de vê, uma efetividade de comportamento, deixam-no muito menos regulado com precisão. Este é, assim, o segundo aspecto do nosso argumento. Não dirigido por padrões culturais — sistemas organizados de símbolos significantes — o comportamento do homem seria virtualmente ingovernável, um simples caos de atos sem sentido e de explosões emocionais, e sua experiência não teria praticamente qual quer forma. A cultura, a totalidade acumulada de tais padrões, não é apenas um ornamento da existência humana, mas uma condição essencial para ela — a principal base de sua especificidade.” ( P. 33)

“Na antropologia, algumas das evidências mais reveladoras que apóiam tal posição provêm de avanços recentes em nossa compreensão daquilo que costumava ser chamado a descendência do homem: a emergência do Homo sapiens do seu ambiente geral primata. Três desses avanços são de importância relevante: (l) o descartar de uma perspectiva seqüencial das relações entre a evolução física e o desenvolvimento cultural do homem em favor de uma superposição ou uma perspectiva interativa; (2) a descoberta de que a maior parte das mudanças biológicas que produziram o homem moderno, a partir de seus progenitores mais imediatos, ocorreu no sistema nervoso central, e especialmente no cérebro: (3) a compreensão de que o homem é, em termos físicos, um animal incompleto, inacabado; o que o distingue mais graficamente dos não homens é menos sua simples habilidade de aprender (não importa quão grande seja ele) do que quanto e que espécie particular de coisas ele tem que aprender antes de poder funcionar.” (P.34)

A perspectiva tradicional das relações entre o avanço biológico e cultural do homem era que o primeiro, o biológico, foi completado, para todos os intentos e propósitos, antes que o último, o cultural, começasse. Isso significa dizer novamente que era estratigráfico. O ser físico do homem evoluiu, através dos mecanismos usuais de variação genética e seleção natural, até o ponto em que sua estrutura anatômica chegou a mais ou menos à situação em que hoje o encontramos: começou então o desenvolvimento cultural. Em algum estágio particular da sua história filogenética, uma mudança genética marginal de alguma espécie tornou-o capaz de produzir e transmitir cultura e, daí em diante, sua forma de resposta adaptativa às pressões ambientais foi muito mais exclusivamente cultural do que genética. À medida que se espalhava pelo globo, ele vestia peles nos climas frios e tangas (ou nada) nos climas quentes; não alterou seu modo inato de responder à temperatura ambiental. Fabricou armas para aumentar seus poderes predatórios herdados e cozinhou os alimentos para tornar alguns deles mais digestivos.”(P.34)

“O homem se tornou homem, continua a história, quando, tendo cruzado algum Rubicon mental, ele foi capaz de transmitir “conhecimento, crença, lei, moral, costume” (para citar os itens da definição clássica de cultura de Sir Edward Tylor) a seus descendentes e seus vizinhos através do aprendizado. Após esse momento mágico, o avanço dos hominídios de pendeu quase que inteiramente da acumulação cultural, do lento crescimento das práticas convencionais, e não da mudança orgânica física, como havia ocorrIdo em áreas passadas.” (P.34)

“O único problema é que tal momento não parece ter existido. Pelas estimativas recentes, a transição para um tipo de vida cultural demorou alguns milhões de anos até ser conseguida pelo gênero Homo. Assim retardado, isso envolveu não apenas uma ou um punhado de mudanças genéticas marginais, porém uma seqüência, longa, complexa e estreitamente ordenada.” ( P.34)

“Isso significa que a cultura, em vez de ser acrescentada, por assim dizer, a um animal acabado ou virtualmente acabado, foi um ingrediente, e um ingrediente essencial, na produção desse mesmo animal.” ( P.34)

“Entre o padrão cultural, o corpo e o cérebro foi criado um sistema de realimentação (feedback) positiva, no qual cada um modelava o progresso do outro, um sistema no qual a interação entre o uso crescente das ferramentas, a mudança da anatomia da mão e a representação expandida do polegar no córtex é apenas um dos exemplos mais gráficos. Submetendo-se ao governo de programas simbolicamente mediados para a produção de artefatos, organizando a vida social ou expressando emoções, o homem determinou, embora inconscientemente, os estágios culminantes do seu próprio destino biológico. Literalmente, embora inadvertidamente, ele próprio se criou.” (P.35)

“O que nos aconteceu na Era Glacial é que fomos obrigados a abandonar a regularidade e a precisão do controle genético detalhado sobre nossa conduta em favor da flexibilidade e adaptabilidade de um controle genético mais generalizado sobre ela, embora não menos real. Para obter a informação adicional necessária no sentido de agir, fomos forçados a depender cada vez mais de fontes culturais — o fundo acumulado de símbolos significantes. Tais símbolos são, portanto, não apenas simples expressões, instrumentalidade ou correlatos de nossa existência biológica, psicológica e social: eles são seus pré-requisitos. Sem os homens certamente não haveria cultura, mas, de forma semelhante e muito significativamente, sem cultura não haveria homens.” (P.36)

“Somando tudo isso, nós somos animais incompletos e inacabados que nos completamos e acabamos através da cultura — não através da cultura em geral, mas através de formas altamente particulares de cultura: dobuana e javanesa, Hopi e italiana, de classe alta e classe baixa, acadêmica e comercial. A grande capacidade de aprendizagem do homem, sua plasticidade, tem sido observada muitas vezes, mas o que é ainda mais crítico é sua extrema dependência de uma espécie de aprendizado: atingir conceitos, a apreensão e aplicação de sistemas específicos de significado simbólico.” (P.36)

“Conforme um autor mencionou com grande propriedade, vive mos num “hiato de informações”. Entre o que o nosso corpo nos diz e o que devemos saber a fim de funcionar, há um vácuo que nós mesmos devemos preencher, e nós o preenchemos com a informação (ou desinformação) fornecida pela nossa cultura.”( P.36)

“Entre os planos básicos para a nossa vida que os nossos genes estabelecem — a capacidade de falar ou de sorrir — e o comportamento preciso que de fato executamos — falar inglês num certo tom de voz, sorrir enigmaticamente numa delicada situação social — existe um conjunto complexo de símbolos significantes, sob cuja direção nós transformamos os primeiros no segundo, os planos básicos em atividade.” (P.36)

“Nossas idéias, nossos valores, nossos atos, até mesmo nossas emoções são, como nosso próprio sistema nervoso, produtos culturais — na verdade, produtos manufaturados a partir de tendências, capacidades e disposições com as quais nascemos, e, não obstante, manufaturados. Chartres é feita de pedra e vidro, mas não é apenas pedra e vidro, é uma catedral, e não somente uma catedral, mas uma catedral particular, construída num tempo particular por certos membros de uma sociedade particular. Para compreender o que isso significa, para perceber o que isso é exatamente, você precisa conhecer mais do que as propriedades genéricas da pedra e do vidro e bem mais do que é comum a todas as catedrais. Você precisa compreender também — e, em minha opinião, da forma mais crítica — os conceitos específicos das relações entre Deus, o homem e a arquitetura que ela incorpora, uma vez que foram eles que governaram a sua criação. Não é diferente com os homens: eles também, até o último deles, são artefatos culturais.” ( p.36)

“Quaisquer que sejam as diferenças que elas apresentam, as abordagens para a definição da natureza humana adotadas pelo iluminismo e pela antropologia clássica têm uma coisa em comum: ambas são basicamente tipológicas. Elas tentam construir uma imagem do homem como um modelo, um arquétipo, uma idéia platônica ou uma forma aristotélica, em relação à qual os homens reais — você, eu, Churchill, Hitler e o caçador de cabeças bornéu — não são mais que reflexos, distorções, aproximações.” (P.37)

“ Todavia, o sacrifício é tão desnecessário como inútil. Não há Oposição entre a compreensão teórica geral e a compreensão circunstancial, entre a visão sinóptica e a visão detalhista. Na verdade, é através do seu poder de tirar proposições gerais a partir de fenômenos particulares que uma teoria científica — aliás, a própria ciência — deve ser julgada. Se queremos descobrir quanto vale o homem, só poderemos descobri-lo naquilo que os homens são: e o que os homens são, acima de todas as outras coisas, é variado. É na compreensão dessa variedade — seu alcance, sua natureza, sua base e suas implicações — que chegaremos a construir um conceito da natureza humana que contenha ao mesmo tempo substância e verdade, mais do que uma sombra estatística e menos do que o sonho de um primitivista.” (P.37)

“E para chegar, finalmente, à razão do n título, é aqui que o conceito de cultura tem seu impacto no conceito de homem. Quando vista como um conjunto de mecanismos simbólicos para controle do comportamento, fontes de informação extra-somáticas, a cultura fornece o vínculo entre o que os homens são intrinsecamente capazes de se tornar e o que eles realmente se tornam, um por um. Tornar-se humano é tornar-se individual, e nós nos tornamos individuais sob a direção dos padrões culturais, sistemas de significados criados historicamente em termos dos quais damos forma, ordem, objetivo e direção às nossas vidas.”(P.37)

“Resumindo, temos que descer aos detalhes, além das etiquetas enganadoras, além dos tipos metafísicos, além das similaridades vazias, para apreender corretamente o caráter essencial não apenas das várias culturas, mas também dos vários tipos de indivíduos dentro de cada cultura, se é que desejamos encontrar a humanidade face a face. Nessa área, o caminho para o geral, para as simplicidades reveladoras da ciência ,segue através de uma preocupação com o particular; o circunstancial, o concreto, mas uma preocupação organizada e dirigida em termos da espécie de análises teóricas sobre as quais toquei — as análises da evolução física, do funcionamento do sistema nervoso, da organização social, do processo psicológico, da padronização cultural e assim por diante — e, muito especialmente, em termos da influência mútua entre eles. Isso quer dizer que o caminho segue através de uma complexidade terrificante, como qualquer expedição genuína.” (P.38)

“Curvado sobre seus próprios fragmentos, pedras e plantas comuns, o antropólogo também medita sobre o verdadeiro e o insignificante, nele vislumbrando (ou pelo menos é o que pensa), fugaz e inseguramente, sua própria imagem desconcertante, mutável.” (P.39)







A Escola dos Annalles - 1929-1989 - A revolução francesa da historiografia- Peter Burke


BURKE, Peter. A Escola dos Annalles, 1929-1989. A revolução francesa da historiografia. São Paulo: Unesp, 1991. 154 páginas.

“Em toda a literatura, a sociedade contempla a sua própria imagem.” Marc Bloch.


“É necessário ser herético”. Lucien Febvre
“As mudanças ocorrem no tempo de gerações, e mesmo de séculos, por isso os contemporâneos dos fatos nem sempre se apercebem delas.” Fernand Braudel
“Meu grande problema, o único problema a resolver, é demonstrar que o tempo avança com diferentes velocidades”.Fernand Braudel

Apresentação

“A insatisfação que os jovens Marc Bloch e Lucien Febvre demonstravam, nas décadas de 10 e 20, em relação à história política, sem dúvida estava vinculada à relativa pobreza de suas análises, em que situações históricas complexas se viam reduzidas a um simples jogo de poder entre grandes – homens ou países – ignorando que, aquém e além dele, se situavam campos de forças estruturais, coletivas e individuais que lhe conferiam densidade e profundidade incompatíveis com o que parecia ser a frivolidade dos eventos.” ( Pág 7)

“A necessidade de uma história mais abrangente e totalizante nascia do fato de que o homem se sentia como um ser cuja complexidade em sua maneira de sentir, pensar e agir, não podia reduzir-se a um pálido reflexo de jogos de poder, ou de maneiras de sentir, pensar e agir dos poderosos do momento. Fazer uma outra história, na expressão usada por Febvre, era portanto menos redescobrir o homem do que, enfim, descobri-lo na plenitude de suas virtualidades, que se inscreviam concretamente em suas realizações históricas.” ( Pág 7)

“Como em Michelet, não se desprezava o subjetivo, a individualidade, como em Marx ou em outros historiadores que assentavam suas análises no econômico e no social; não se esquecia de que as estruturas sempre têm algo a dizer a respeito do comportamento do homem; e como Burckhardt, afirmava-se que o homem não se confinava a um corpo a ser mantido, mas também um espírito que criava e sentia diferentemente, em situações diferençadas.” ( Pág 7)

“Por outro lado, permite compreender que o engajamento histórico não é uma via de mão única e que buscar o conhecimento do homem integral e total – preocupação constante de Marx – não deve limitar-se a vê-lo como prisioneiro de estruturas asfixiantes, mas também como um espírito capaz de ser livre por sua criatividade.” ( Pág 9)

Prefácio

“Uma boa parte dessa nova história é o produto de um pequeno grupo associado à revista Annales, criada em 1929. Embora esse grupo seja chamado geralmente de a “Escola dos Annales”, por se enfatizar o que possuem em comum, seus membros, muitas vezes, negam sua existência ao realçarem as diferentes contribuições individuais no interior do grupo.” ( Pág 11)

“O núcleo central do grupo é formado por Lucien Febvre, Marc Bloch, Fernand Braudel, Georges Duby, Jacques Le Goff e Emmanuel Le Roy Ladurie. Próximos desse centro estão Ernest Labrousse, Pierre Vilar, Maurice Agulhon e Michel Vovelle, quatro importantes historiadores cujo compromisso com uma visão marxista da história particularmente forte no caso de Vilar – coloca-os fora desse núcleo. Aquém ou além dessa fronteira estão Roland Mousnier e Michel Foucault. Este aparece esporadicamente neste estudo em razão da interpenetração de seus interesses históricos com os vinculados aos Annales.” ( Pág 11)
“O objetivo deste livro é descrever, analisar e avaliar a obra da escola dos Annales. Essa escola é, amiúde, vista como um grupo monolítico, com uma prática histórica uniforme, quantitativa no que concerne ao método, determinista em suas concepções, hostil ou, pelo menos, indiferente à política e aos eventos. Esse estereótipo dos Annales ignora tanto as divergências individuais entre seus membros quanto seu desenvolvimento no tempo. Talvez seja preferível falar num movimento dos Annales, não numa “escola”. ( Pág 12)

“Esse movimento pode ser dividido em três fases. Em sua primeira fase, de 1920 a 1945, caracterizou-se por ser pequeno, radical e subversivo, conduzindo uma guerra de guerrilhas contra a história tradicional, a história política e a história dos eventos. Depois da Segunda Guerra Mundial, os rebeldes apoderaram-se do establishement histórico. Essa segunda fase do movimento, que mais se aproxima verdadeiramente de uma “escola”, com conceitos diferentes (particularmente estrutura e conjuntura) e novos métodos (especialmente a “história serial” das mudanças na longa duração), foi dominada pela presença de Fernand Braudel.” ( Pág 12)

“Na história do movimento, uma terceira fase se inicia por volta de 1968. É profundamente marcada pela fragmentação. A influência do movimento, especialmente na França, já era tão grande que perdera muito das especificidades anteriores. Era uma “escola” unificada apenas aos olhos de seus admiradores externos e seus críticos domésticos, que perseveravam em reprovar-lhe a pouca importância atribuída à política e à história dos eventos. Nos últimos vinte anos, porém, alguns membros do grupo transferiram-se da história socioeconômica para a sociocultural, enquanto outros estão redescobrindo a história política e mesmo a narrativa.” ( Pág 12)

1 - O antigo regime na historiografia e seus críticos

“Por volta de meados do século XVIII, um certo número de escritores e intelectuais, na Escócia, França, Itália, Alemanha e em outros países, começou a preocupar-se com o que denominava a “história da sociedade”. Uma história que não se limitava a guerras e à política, mas preocupava-se com as leis e o comércio, a moral e os “costumes”, temas que haviam sido o centro de atenção do famoso livro de Voltaire Essai sur lés moeurs.” ( Pág 17)

“Contudo, uma das conseqüências da chamada “Revolução Copernicana” na história ligada ao nome de Leopold von Ranke, foi marginalizar, ou re-marginalizar, a história sociocultural. Os interesses pessoais de Ranke não se limitavam à história política. Escreveu sobre a Reforma e a Contra-Reforma e não rejeitou a história da sociedade, da arte, da literatura ou da ciência. Apesar disso, o movimento por ele liderado e o novo paradigma histórico elaborado arruinaram a “nova história” do século XVIII. Sua ênfase nas fontes dos arquivos fez com que os historiadores que trabalhavam a história sociocultural parecessem meros dilettanti. ( Pág 18)

“Mesmo no século XIX, alguns historiadores foram vozes discordantes. Michelet e Burckhardt, que escreveram suas histórias sobre o Renascimento mais ou menos na mesma época, 1865 e 1860, respectivamente, tinham uma visão mais ampla da história do que os seguidores de Ranke. Burckhardt interpretava a história como um campo em que interagiam três forças – o Estado, a Religião e a Cultura –, enquanto Michelet defendia o que hoje poderíamos descrever como uma “história da perspectiva das classes subalternas”, em suas próprias palavras “a história daqueles que sofreram, trabalharam, definharam e morreram sem ter a possibilidade de descrever seus sofrimentos”.” (Pág 18)

“Não podemos esquecer que a obra-prima do velho historiador francês Fustel deCoulanges, A Cidade Antiga (1864), dedicava-se antes à história da religião, da família e da moralidade, do que aos eventos e à política. Marx também oferecia um paradigma histórico alternativo ao de Ranke. Segundo sua visão histórica, as causas fundamentais da mudança histórica deveriam ser encontradas nas tensões existentes no interior das estruturas socioeconômicas.” ( Pág 19)

“De qualquer forma, os historiadores eram vistos dessa maneira pelos cientistas sociais. O desprezo de Durkheim pelos eventos já foi mencionado; seu seguidor, o economista François Simiand, foi mais longe nesse sentido, quando, num famoso artigo, atacou o que chamou de “os ídolos da tribo dos historiadores”. Segundo ele, havia três ídolos que deveriam ser derrubados: “o ídolo político”, “a eterna preocupação com a história política, os fatos políticos, as guerras, etc., que conferem a esses eventos uma exagerada importância”; o “ídolo individual”, isto é, a ênfase excessiva nos chamados grandes homens, de forma que mesmo estudos sobre instituições eram apresentados como “Pontchartrain e o Parlamento de Paris”, ou coisas desse gênero; e, finalmente, o “ídolo cronológico”, ou seja, “o hábito de perder-se nos estudos das origens” . “ ( Pág 21)

“Talvez tenha sido por essa razão que Seignobos se transformou no símbolo de tudo aquilo a que os reformadores se opunham. De fato, ele não era exclusivamente um historiador político, pois escrevera também sobre civilização. Estava interessado na relação entre a história e as ciências sociais, embora não tivesse a mesma visão dessa relação que Simiand ou Febvre. Estes publicaram duras críticas a seu trabalho. A crítica de Simiand apareceu numa nova revista, a Revue de Synthèse Historique, fundada por um grande empreendedor intelectual, Henri Berr. Sua intenção, encorajar historiadores a colaborar com outras disciplinas, especialmente com a psicologia e a sociologia, na esperança de produzir o que ele chamava de “psicologia histórica” ou “coletiva”. ” ( Pág 22)

2 – Os fundadores: Lucien Febvre e Marc bloch

“Les Rois Thaumaturges merece ser considerada uma das grandes obras históricas do nosso século. Seu tema é a crença, muito difundida na Inglaterra e na França, da Idade Média até o século XVIII, de que os reis tinham o poder de curar os doentes de escrófula, uma doença da pele conhecida como o “mal dos reis”, através do toque real, que se fazia acompanhar de um ritual com essa finalidade.” ( Pág 28)

“O autor considerava seu livro, com alguma razão, uma contribuição à história política da Europa no sentido mais amplo e verdadeiro do termo “político”, pois nele analisava a idéia de monarquia. “O milagre real foi acima de tudo a expressão de uma concepção particular do poder político supremo”.” ( Pág 28)

“Les Rois Thaumaturges Les Rois Thaumaturges foi notável em pelo menos três outros aspectos. Primeiro, porque não se limitava a um período histórico convencional, a Idade Média. Seguindo o conselho que mais tarde formularia em termos gerais em seu Métier d’historien, Bloch escolheu o período para localizar o problema, o que significava que tinha de escrever “ a história da longa-duração”, como foi chamada por Braudel uma geração depois. Tal perspectiva conduziu Bloch a conclusões interessantes; uma das mais importantes foi a de constatar que o ritual do toque não apenas sobreviveu no século XVII, a época de Descartes e de Luís XIV, mas nele floresceu como jamais, pelo menos no sentido de que Luís XIV tocou um número maior de doentes do que seus predecessores. Não era, pois, um mero “fóssil”.” ( Pág 29)

“De maneira semelhante, o artigo de Febvre sobre a Reforma critica os historiadores religiosos por tratarem o episódio como essencialmente vinculado aos “abusos” institucionais e a intenção de reformá-los, mais do que como “uma profunda revolução do sentimento religioso”. De acordo com Febvre, a razão dessa revolução deveria ser buscada, ainda uma vez, na ascensão da burguesia, que “necessitava de... uma religião que fosse transparente, racional, humana e amavelmente fraternal” . A invocação da burguesia parece hoje um pouco recorrente, mas o intento de ligar a religião à história social permanece inspiradora.” ( Pág 31)

“Ele admitia que as evidências desse grupo social “datavam de um tempo em que ele nada mais era do que uma sombra de si mesmo”, mas argumentava que essas últimas evidências permitiam “apreender vestígios” do que era o sistema em sua plenitude. Em outras palavras, Bloch não criou o novo método. Sua tarefa foi empregá-lo de uma maneira mais consciente e sistemática do que os seus predecessores.”( Pág 36)

“O segundo estudo, La societé féodale, é o livro pelo qual Bloch é mais conhecido. É uma ambiciosa síntese que abrange mais de quatro séculos de história européia, vai de 900 a 1300, enfocando uma grande variedade de tópicos, muitos dos quais discutidos em outras obras: servidão e liberdade, monarquia sagrada, a importância do dinheiro e outros. Por isso, pode-se afirmar que se trata de uma obra que sintetiza o trabalho de toda a sua vida. ( Pág 36)

“Diferentemente de seus primeiros estudos sobre o sistema feudal, não se restringe à análise das relações entre a propriedade agrária, a hierarquia social, a guerra e o estado. Preocupa-se com a sociedade feudal como um todo, com o que hoje designaríamos “a cultura do feudalismo”. Como também, ainda uma vez, com a psicologia histórica, com o que o autor chamava de “modos de sentir e de pensar”. É a parte mais original do livro, consubstanciada numa discussão sobre temas como o sentido do tempo, ou melhor, a medieval “indiferença pelo tempo”, ou, pelo menos, sua falta de interesse em mensurá-lo acuradamente. Dedica também um capítulo à “memória coletiva”, um tema que tanto o fascinou quanto ao seu amigo, o sociólogo durkheiminiano Maurice Halbwachs.”  (Pág 36)

“ Em toda a literatura, a sociedade contempla a sua própria imagem.” ( Pág 36)

“Pouco a pouco os Annales converteram-se no centro de uma escola histórica. Foi entre 1930 e 1940 que Febvre escreveu a maioria de seus ataques aos especialistas canhestros e empiricistas, além de seus manifestos e programas em defesa de “um novo tipo de história” associado aos Annales –postulando por pesquisa interdisciplinar, por uma história voltada para problemas , por uma história da sensibilidade, etc.” ( Pág 38)

“Sua única feição iconoclástica era o capítulo em que Bloch atacava o que denominou, no estilo de Simiand, “o ídolo das origens”, defendendo que todo fenômeno histórico tem de ser explicado em termos de seu tempo, e não em função de tempos anteriores.” ( pág 39)

“De uma maneira semelhante, Febvre agora tentava explicar por que o povo não duvidava da existência de Deus. Argumentava, que o “instrumental intelectual” do período, como o denominava, não permitia a descrença.” (Pág 40)
“Enfocou o problema com uma verve característica, por uma espécie de via negativa, anotando a importância do que faltava ao século XVI, as palavras que faltavam, incluindo termos-chave, tais como “absoluto” e “relativo”, “abstrato” e “concreto”, “causalidade”, “regularidade”, e tantos outros. “Sem eles”, indaga enfaticamente, “como poderia o pensamento de alguém possuir um verdadeiro vigor filosófico, solidez e claridade?”.” (Pág 41)

“O profundo interesse de Febvre pela lingüística subjaz a essa discussão extremamente original. Contudo, ele não se contentou com uma análise lingüística. O livro finaliza com um debate sobre alguns problemas da psicologia histórica. É a parte do livro mais conhecida, bastante controvertida, mas muito inspiradora. Observa, por exemplo, que as concepções seiscentistas de espaço e tempo eram extremamente imprecisas se comparadas com os nossos padrões. “Em que ano nasceu Rabelais? Ele não sabia”, e nada havia de incomum nesse desconhecimento. “O tempo mensurado”, ou o tempo de relógio, era ainda menos significativo do que o “tempo vivenciado”, descrito em termos de pôr-de-sol, do vôo das aves ou da extensão de uma Ave Maria. Febvre vai mais longe e sugere que a visão era um sentido “subdesenvolvido” nesse período, e que o sentimento de beleza da natureza não existia. “Não existia um Hotel Belavista no século XVI, nem qualquer Hotel Campo Belo. Esses nomes apenas apareceram com o Romantismo.” (Pág 41)

“De acordo com Febvre, havia ainda uma outra ausência mais significativa na visão de mundo do período: “Ninguém, então, tinha noção do que era impossível”. Entendo que Febvre esteja presumindo que não havia um critério aceito geralmente para o que era impossível, pois o adjetivo “impossível” não consta de sua relação das “palavras que faltam”. Como resultado dessa falta de critério, o que denominamos “ciência” era literalmente impensável no século XVI. “Devemos nos resguardar de projetar esta concepção moderna de ciência nos quadros de referência de nossos ancestrais”. O instrumental intelectual da época era muito “primitivo”. Assim, uma análise precisa e técnica do significado do termo “ateísta” levou muitos escritores a uma temerária caracterização da visão de mundo de uma época inteira.” (Pág 41)

“Os Annales começaram como uma revista de seita herética. “É necessário ser herético”, declarou Febvre em sua aula inaugural, Oportet haereses esse (Febvre, 1953, p.16). Depois da guerra, com tudo, a revista transformou-se no órgão oficial de uma igreja ortodoxa47. Sob a liderança de Febvre os revolucionários intelectuais souberam conquistar o establishment histórico francês. O herdeiro desse poder seria Fernand Braudel.” (Pág 43)

3- A era Braudel

“Aguas mais calmas, que correm mais profundamente, são o objeto da segunda parte do Mediterrâneo, denominada “Destinos coletivos e movimentos de conjunto”; sua preocupação, a história das estruturas-sistemas econômicos, estados, sociedades, civilizações e formas mutantes de guerra. Esta história se movimenta a um ritmo mais lento do que a dos eventos. As mudanças ocorrem no tempo de gerações, e mesmo de séculos, por isso os contemporâneos dos fatos nem sempre se apercebem delas. Mas, mesmo assim, eles são carregados pela corrente.” (Pág 48)

“Como as estruturas políticas, as estruturas sociais dos dois grandes impérios –opostas entre si de diversas maneiras no topo – caminharam gradativamente no sentido de se assemelharem cada vez mais. As principais tendências sociais na Anatólia e nos Balcãs, nos séculos XVI e XVII, corriam paralelas às da Espanha e Itália, sendo que esta, durante o período, estava submetida em grande parte às leis espanholas. Segundo Braudel, a principal tendência, em ambos os lados, era a polarização social e econômica. A nobreza enriquecia e migrava para as cidades, os pobres tornavam-se cada vez mais pobres e eram empurrados para a pirataria e o banditismo. Quanto às classes médias, desapareceram ou “emigraram” para a nobreza, processo descrito por Braudel como a “traição” ou a “falência” da burguesia.” (Pág 49)

“É provavelmente revelador que Braudel use em seus escritos, mais de uma vez, a metáfora da prisão, descrevendo o homem como “prisioneiro” não somente do seu ambiente físico, mas também de sua estrutura mental (os quadros mentais são também prisões de longa duração) (Braudel, 1969, p. 31). Diferentemente de Febvre, Braudel não percebe a dupla face das estruturas, que são, ao mesmo tempo, estimulantes e inibidoras. “Quando penso no indivíduo, escreveu uma vez, sou sempre inclinado a vê-lo como prisioneiro de um destino sobre o qual pouco pode influir”.” ( Pág 53)
“O debate sobre os limites da liberdade e o determinismo é um daqueles que deverão permanecer até quando a historiografia existir. Independentemente da opinião dos filósofos, é extremamente difícil aos historiadores, nesse debate, irem além de uma simples afirmação de sua própria posição.” ( Pág 53)

“Para os historiadores, é mais significativa a maneira pela qual ele maneja o tempo, seu intento “de dividir o tempo histórico em tempo geográfico, tempo social e tempo individual”, realçando a importância do que se tornou conhecido, desde a publicação do famoso artigo, como a longa duração (Ibid. p. 21; Braudel 1958). A longa duração de Braudel pode ser curta em relação aos padrões dos geólogos, mas sua ênfase do “tempo geográfico” alertou muitos historiadores.” ( Pág 55)

“Segundo Braudel, a contribuição especial do historiador às ciências sociais é a consciência de que todas as “estruturas” estão sujeitas a mudanças, mesmo que lentas (Braudel, 1969, pp. 26 ss.). Era impaciente com fronteiras, separassem elas regiões ou ciências. Desejava ver as coisas em sua inteireza, integrar o econômico, o social, o político e o cultural na história “total”. “Um historiador fiel às lições de Lucien Febvre e Marcel Mauss desejará sempre ver o todo, a totalidade do social”.” (Pág 55)

“Vale lembrar a advertência de que achava necessário acrescentar para preservar uma certa distância intelectual de Marx e, mais ainda, do marxismo, evitando cair na armadilha de uma estrutura intelectual que considerava muito rígida. “O gênio de Marx, o segredo de sua longa influência, escreveu Braudel, está no fato de ter sido o primeiro a construir verdadeiros modelos sociais, fundamentados na longa duração histórica. Esses modelos se sedimentaram em toda sua simplicidade por lhe darem o status de leis” Braudel, 1969, p. 51).” (Pág 63)
“Ele foi assim , de alguma maneira, alheio a dois grandes movimentos no interior da história dos annales de seu tempo, a história quantitativa e a história das mentalidades.” (Pág 66)

“Apesar de sua liderança carismática e de sua contribuição, o desenvolvimento da escola dos Annales nos tempos de Braudel, não pode ser explicado apenas em função de suas idéias, interesses e influências. Os “destinos coletivos e as tendências gerais” do movimento merecem também ser examinados. Dessas tendências, a mais importante, de mais ou menos 1950 até 1970, ou mesmo mais, foi certamente o nascimento da história quantitativa. Esta “revolução quantitativa”, como foi chamada, foi primeiramente sentida no campo econômico, particularmente na história dos preços. Da economia espraiou-se para a história social, especialmente para a história populacional.” (Pág 67)

“Não se constituia em novidade os historiadores econômicos lidarem com estatísticas. Um grande número de pesquisas sobre a história dos preços havia sido realizado no século XIX (Wiebe, 1895). O início dos anos 30 assistiu a uma explosão de interesse pelo tema, vinculada, sem dúvida, à hiperinflação alemã e ao estouro das bolsas em 1929.” (Pág 67)

“Como já vimos, nem Febvre nem Bloch tinham grande interesse nas idéias de Marx. Apesar de seu socialismo e de sua admiração por Jaurès, Febvre era muito voluntarista para ter Marx como fonte de inspiração. Quanto a Bloch, apesar de seu entusiasmo pela história econômica, afastava-se de Marx em razão de sua perspectiva durkheiminiana (Suratteau, 1983). Braudel, como já vimos, deve mais a Marx, mas apenas em suas últimas obras.”(Pág 68)

“De uma maneira similar, a maioria das monografias regionais, dentro do estilo dos Annales das décadas de 60 e 70, uma notável obra coletiva, restringia-se à história econômica e social, com introduções geográficas ao modelo de Braudel.” (Pág 72)

4 - A terceira geração

“Mais significativas, contudo, do que as tarefas administrativas foram as mudanças intelectuais ocorridas nos últimos vinte anos. O problema está em que é mais difícil traçar o perfil da terceira geração do que das duas anteriores. Ninguém neste período dominou o grupo como o fizeram Febvre e Braudel. Alguns comentadores chegaram mesmo a falar numa fragmentação (Dosse, 1987).”(Pág 79)

“A terceira geração é a primeira a incluir mulheres, especialmente Christiane Klapisch, que trabalhou sobre a história da família na Toscana durante a Idade Média e o Renascimento; Arlette Farge, que estudou o mundo social das ruas de Paris no século XVIII; Mona Ozouf, autora de um estudo muito conhecido sobre os festivais durante a Revolução Francesa; e Michèle Perrot, que escreveu sobre a história do trabalho e a história da mulher.”(Pág 80)

“Por diferentes caminhos, tentaram fazer uma síntese entre a tradição dos Annales e as tendências intelectuais americanas-como a psico-história, a nova história econômica, a história da cultura popular, antropologia simbólica, etc.” (Pág 80)

“Lucien Febvre tomou emprestadas suas idéias sobre a psicologia de Blondel e Wallon. Besançon, Le Roy Ladurie e Delumeau tomaram suas idéias principalmente de Freud, dos freudianos ou neofreudianos. O estilo americano de psico-história, orientado no sentido do estudo de indivíduos, finalmente encontrou a psicologia histórica francesa, dirigida no sentido do estudo de grupos, embora as duas correntes não se tenham fundido numa síntese.” (Pág 85)

“Sua contribuição mais substancial, contudo, para a história das mentalidades, ou à história do “imaginário medieval”, como agora denomina, foi realizada vinte anos depois com a publicação do La naissance du Purgatoire, uma história das mudanças das representações da vida depois da morte. Segundo Le Goff, o nascimento da idéia de Purgatório fazia parte da “transformação do cristianismo feudal”, havendo conexões entre as mudanças intelectuais e as sociais. Ao mesmo tempo, insistia na “mediação” de “estruturas mentais”, de “hábitos de pensamento”, ou de “aparatos intelectuais”, em outras palavras, de mentalidades, observando que, nos séculos XII e XIII, surgiram novas atitudes em relação ao tempo, espaço e número, inclusive o que ele chamava do “livro contábil da vida depois da morte” (Pág 86)

“Ideologia, observa Duby, não é um reflexo passivo sobre a sociedade, mas um projeto para agir sobre ela”.(Pág 87)

“ A história das mentalidades não foi marginalizada nos Annales, em sua segunda geração, apenas porque Braudel não tinha interesse nela. Existiram pelo menos, duas outras razões mais importantes para essa marginalização. Em primeiro lugar, um bom número de historiadores franceses acreditava, ou pelo menos pressupunha, que a história social e econômica era mais importante, ou mais fundamental, do que outros aspectos do passado. Em segundo lugar, a nova abordagem quantitativa, analisada no capítulo anterior, não encontrava no estudo das mentalidades o mesmo tipo de sustentação oferecido pela estrutura socioeconômica.” ( Pág 88)

“No final da década de 70, os inconvenientes dessa espécie de história tornaram-se visíveis. De fato, houve algo como que uma reação negativa indiscriminada contra a abordagem quantitativa. Ao mesmo tempo se formava uma reação contrária ao que os Annales defendiam, especialmente contra o domínio da história estrutural e social. Olhando para o lado positivo dessas reações, podemos distinguir três correntes: uma mudança antropológica, um retorno à política e um ressurgimento da narrativa.” (Pág 93)
“Tudo o que os historiadores anteriores pareciam desejar de sua disciplina vizinha era a oportunidade de sobrevoá-la, de tempos em tempos, em busca de novos conceitos. Alguns historiadores das décadas de 70 e 80, contudo, demonstraram intenções mais sérias. Podiam mesmo pensar em termos de casamento, em outras palavras em termos de “antropologia histórica” ou de “etno-história”. (Pág 94)
“Um ponto mais geral enfatizado por Chartier é que é impossível “estabelecer relações exclusivas entre formas culturais específicas e grupos sociais particulares”. Isto claramente torna a história da cultura serial bem mais difícil, se não mesmo impossível. Chartier mudou, portanto, sua atenção, seguindo Pierre Bourdieu e Michel De Certeau, para as “práticas” culturais compartilhadas por vários grupos.”(Pág 99)
“Febvre e Braudel pouco se preocuparam com a política nacional, o que não ocorreu com um bom número de historiadores proeminentes do grupo, que estiveram envolvidos com a política francesa do pós-guerra, freqüentemente como membros – pelo menos, por um certo tempo – do Partido Comunista.” (Pág 100)

“O renascimento não é simplesmente um retorno ao passado. A biografia histórica é praticada por diferentes razões e assume formas diferentes. Pode ser um meio de entender a mentalidade de um grupo. Uma dessas formas é a vida de indivíduos mais ou menos comuns, como o burguês Joseph Sec, sobre quem Vovelle escreveu em razão de sua “irresistível ascensão”, ou do artesão parisiense, Jean-Louis Ménétra, estudado por Daniel Roche.”(Pág 104)

“Paralela ao “retorno à política”, houve recententemente um “renascimento da narrativa” entre os historiadores franceses e de outros países. A frase é de Lawrence Stone, um historiador inglês que atribui a tendência a “uma difundida desilusão com o modelo determinista da explicação marxista”, empregada por historiadores marxistas e dos Annales, e especialmente com o fato de relegarem a cultura à superestrutura ou “terceiro nível”.”(Pág 104)

5 – Os annales numa perspectiva global

“Um outro aspecto da influência dos Annales é a difusão de conceitos, abordagens e métodos, de um período histórico para outro, de uma região para outra. O movimento tem sido dominado por estudiosos do início da Europa moderna (Febvre, Braudel, Le Roy Ladurie), seguidos de perto por medievalistas (Bloch, Duby, Le Goff).” (Pág 113)
“A conclusão paradoxal a que chegou um observador alemão simpático ao movimento é a de que uma história, ao estilo dos Annales, sobre a história de nosso século é, ao mesmo tempo, necessária e impossível. “Se for escrita, não será história ao estilo dos Annales. Mas à história contemporânea não pode continuar a ser escrita sem os Annales.” (Weaseling, 1978).” (Pág 113)

“Embora tenha sido um antigo discípulo de Bloch, Henri Brunschwig, que se tornou um dos mais destacados historiadores da África colonial, seu estudo sobre o imperialismo francês parece dever pouco aos Annales, sem dúvida porque sua preocupação com o passado recente e com a relativamente curta duração (1871-1914) tornam esse modelo irrelevante.” (Pág 114)

“Quanto à Ásia è à América, as coisas são ainda mais complicadas. Embora existam sinais de um interesse crescente nessa abordagem e quatro membros do grupo convidados a participar de uma conferência sobre “a nova história”, realizada em Nova Delhi, em 1988, os historiadores hindus pouco se aproveitaram dos Annales.” ( Pág 115)

“O mais criativo grupo de historiadores hindus, que navegam sob a bandeira dos “estudos subalternos”, conhecem bem a tradição francesa, mas preferem um marxismo aberto.” (Pág 115)

“Um certo número de historiadores japoneses estudou na Hautes Études, mas todos trabalham com a história da Europa.” (Pág 115)

“No desenvolvimento intelectual de Foucault, por exemplo, a “nova história” francesa desempenhou um papel significativo. Foucault caminhou em linhas paralelas às da terceira geração dos Annales. Da mesma maneira que ela, estava preocupado em ampliar os temas da história. Ele tinha algo à ensinar-lhes, como já vimos (conf. p.103.), mas havia o que deles aprender, também.” (Pág 117)

“O que Foucault gosta de denominar sua “arqueologia”, ou a sua “genealogia”, tem, pelo menos, uma semelhança familiar com a história das mentalidades. Ambas as abordagens mostram uma grande preocupação com tendências de longa duração e uma relativa despreocupação com pensadores individualizados.” (Pág 118)

“Foucault não aceitava na abordagem dos Annales, em relação à história intelectual, o que considerava a ênfase excessiva na continuidade (Foucault, 1969, p. 32). Era precisamente em sua vontade de ir até o fundo dos problemas e em discutir como as visões de mundo se modificam que Foucault diferia mais agudamente dos historiadores das mentalidades. Estes têm coisas importantes a aprender de sua ênfase nas “rupturas” epistemológicas, por mais furiosos que estejam com sua recusa em explicar tais descontinuidades.”  (Pág 119).

“Em outras partes, a situação é mais complicada. Embora o ensaio de Febvre sobre geografia histórica tenha sido traduzido para o inglês logo após a sua publicação, o mundo de fala inglesa era dominado por um estilo tradicional de geografia que pouco espaço deixava para a abordagem francesa. Esse consenso quebrou-se em data recente e foi substituído por um pluralismo, ou melhor, por uma forte disputa entre marxistas, quantitativistas, fenomenólogos e defensores de outros tipos de abordagens, incluindo-se aí os defensores de Braudel.” (Pág 119)

REFERÊNCIA:

BURKE, Peter. A Escola dos Annalles, 1929-1989. A revolução francesa da historiografia. São Paulo: Unesp, 1991. 154 paginas.