domingo, 28 de março de 2010

O nascimento do tempo: filosofia e cinema - Claudio Ulpiano

O nascimento do tempo

Nas quatro aulas, até agora dadas, nós tratamos do movimento. E de duas maneiras: do movimento extenso ― que, por sinal, eu ainda não coloquei nada em termos de cinema, que seria o cinema realista; e do movimento intenso ― que foi a aula passada, [a aula da véspera], onde eu coloquei a imagem-afecção: o ícone de contorno, o ícone de traço e o espaço qualquer.
E dificilmente a aula de hoje irá tocar diretamente no cinema. Porque o que vai ser feito ― e pela primeira vez neste curso ― é uma passagem do movimento para o tempo. Eu estou dizendo aqui que o trabalho de Deleuze sobre cinema são dois volumes: o primeiro chama-se Imagem-Movimento e o segundo, Imagem-Tempo. Então, até agora, dentro da rapidez impressa neste curso, eu só cuidei do movimento. Hoje, eu começo a falar sobre o tempo. Isto não quer dizer que eu não vá voltar ao problema do movimento. Então, se eu fosse classificar esta aula de hoje, eu a chamaria de uma “aula de filosofia” ― jamais de uma aula sobre cinema. Uma aula inteiramente sobre filosofia. E a questão desta aula é o TEMPO. (Tá?)

É uma experimentação muito forte, que a gente vai fazer. E no que diz respeito ao entendimento do que vai ser colocado, em razão da exigüidade do tempo que eu tenho para dar a aula, se vocês quiserem podem fazer questões. Eu só aceito questões que estiverem inteiramente associadas àquilo que estiver sendo dado; [ou seja, se as questões forem pertinentes,] vocês podem fazê-las a qualquer momento.

O que nós vamos pensar ― pela primeira vez ― é o que estou chamando de tempo.

Em primeiro lugar, nós todos conhecemos (atenção para a expressão, hein?) três dimensões do tempo: o passado, o presente e o futuro. O passado é uma dimensão do tempo. O futuro é uma dimensão do tempo.E o presente é também uma dimensão do tempo. Isto quer dizer que o tempo é (alguma coisa + as suas dimensões); ouapenas as suas dimensões.

Quando eu digo que o passado, o presente e o futuro são dimensões do tempo, eu estou dizendo que há “alguma coisa” chamada tempo que possui essas três dimensões. E que ele ― o tempo ― não é, necessariamente, nenhuma das três. É como se eu dissesse que a preposição de ― que eu utilizo quando digo “dimensão do tempo” (o presente é uma dimensão do tempo, o passado é uma dimensão do tempo e o futuro é uma dimensão do tempo) ― tem uma função de inerência: o presente, o passado e o futuro pertencem ao tempo. Isto quer dizer que as três dimensões não esgotariam o tempo: o tempo é alguma coisa a mais que as suas três dimensões. Esse é o ponto de partida ― ainda muito frágil e quebradiço ― desta aula.

A imagem que vem perdurando neste curso ― a tela do Turner ― aquela onde você não encontra nada pronto, você encontra como se fosse ― vamos ver se eu posso dizer assim ― gás dourado...

A tela do Turner ― posso dizer isso? ― Gás dourado (não é?), um fluxo de ouro... (essa tela que ficou umas duas aulas aqui do meu lado, hoje não está...) A tela do Turner ― esse gás dourado, esse fluxo de ouro, eu vou chamar de FLUXO DO SENSÍVEL. (Atenção! Fluxo do sensível seria o que, na penúltima aula, eu chamei de PRIMEIRO SISTEMA DE IMAGEM. Seria o fluxo do sensível. Novamente, aquela imagem do Turner que ficou duas aulas aqui e que eu dizia que um intervalo apareceria no interior daquele fluxo sensível. Então, o ponto de partida desta aula é a identificação da natureza com essa idéia de fluxo do sensível.

E vai aparecer agora um episodio dificílimo de entender nesta aula... mas que vai ter que passar ― vai ter que atravessar! É uma idéia poderosa que apareceu em filosofia, na Grécia, chamada CONTEMPLAÇÃO. Na verdade, essa idéia de contemplação é adotada pela filosofia, mas não é uma idéia originária na filosofia; sua origem é a religião ― e a filosofia adota essa idéia.

Contemplação quer dizer: um sujeito contemplando um objeto ― e uma distância entre eles: entre o sujeito e o objeto. E a filosofia nasce exatamente sob esse princípio: de que a natureza se constituiria de alguma coisa; e esta “alguma coisa” seria contemplada por “outra”. O que me importa aqui é que a idéia de contemplação nasce no MITO e é adotada pela FILOSOFIA.

Em grego, CONTEMPLAÇÃO quer dizer TEORIA. Então, quando a filosofia nasce, ela é dita contemplativa; logo, teórica. Essa noção de contemplação vai chegar aos séculos IV e V dC. Há um grupo de pensadores chamados neo-platônicos, cujo filósofo dominante se chama Plotino, que vai adotar essa idéia de contemplação. Ou seja, o que estou dizendo pra vocês é que a idéia de contemplação nasce nas práticas religiosas; é adotada pela filosofia; e essa idéia coloca a existência de dois pares separados um do outro por uma distância ― o sujeito e o objeto. Essa idéia vai ser adotada pela filosofia neo-platônica; mas, ao adotar essa idéia, o que a filosofia neo-platônica faz, em primeiro lugar, é retirar a distância existente entre sujeito e objeto. Ao retirar essa distância, sujeito e objeto se misturam ― e desaparecem.

A filosofia neo-platônica, portanto, introduz uma dificuldade terrível: porque ela mantém a idéia de contemplação ― e a idéia de contemplação originária é a de um sujeito e um objeto separados ― e coloca essa idéia de contemplação como a junção, o desaparecimento da distância entre sujeito e objeto. E quando a distância desaparece, sujeito e objeto se misturam; logo, desaparecem.

(Eu vou explicar pra vocês!)

Você pega uma semente de rosa, cava a terra e joga ali aquela semente, cobrindo-a com a terra. Se tudo correr bem, (não sei o tempo que isso vai levar,) vamos dizer daí a um ano, aparece uma roseira e, um tanto depois, as rosas começam a brotar. Evidentemente, o nascimento dessa roseira ― e, por conseqüência, o nascimento das rosas ― está associado, ou melhor, é um efeito da associação da semente com a terra. É a associação que a semente faz com a terra que vai permitir o nascimento da roseira. Não há nenhuma dificuldade de se entender o que eu estou dizendo! A partir desse entendimento, nós sabemos que a semente é causa da roseira; mas que a terra também é causa da roseira. Então, a roseira teria uma causa chamada semente; e uma causa chamada terra.

― Por quê?
Porque se você não jogar a semente de rosa, a roseira não nasce; logo, a semente é uma causa. Se você jogar a semente de rosa numa pia, por exemplo, a roseira não nasce; logo, a terra tambémé causa. São, portanto, duas causas ― a semente e a terra. Só que a semente, quando se mistura com a terra, não possui nenhum órgão ― mãos, braços, gruas, pás, ancinhos... ― pra trabalhar nela. Mas, quando a roseira nascer e as rosas aparecerem, essa roseira e essas rosas serão originárias na combinação da semente com a terra. Ou melhor, a semente transforma a terra ou a lama (a terra misturada com água) numa rosa de tecido aveludado, com perfume, com uma forma... Ou seja, a combinação da semente com a terra gera as rosas; e essa combinação chama-se contemplação― porque a semente não tem nenhum mecanismo de atividade!

― O que estou chamando de mecanismo de atividade? Meus braços, por exemplo, são mecanismos de atividade; a pinça de uma lagosta é um mecanismo de atividade. A semente nãotem nenhum poder de atividade! Por isso, eu estou lançando uma tese dificílima: que a semente da rosa contempla a terra e ― ao contemplar ― a rosa vai nascer.

Em filosofia, há uma idéia chamada SÍNTESE. A idéia de síntese quer dizer: juntar elementos que estão separados. Então, quando você tem dois elementos, um separado do outro, e esses elementos se juntam, se misturam, isso se chama síntese. SÍNTESE. A definição de síntese é a conjugação de dois elementos ― que estão separados.

Até agora, eu disse três coisas pra vocês: eu falei na rosa e na semente da rosa e no processo contemplativo que ela vai exercer; em seguida, eu falei o que vem a ser síntese ― a síntese é a junção de dois elementos que estão separados. Mas a primeira coisa que eu falei foi que a natureza é um fluxo sensível.

Então, a natureza é um fluxo que se repete eternamente: um “processo” (entre aspas, porque a palavra é mal aplicada) que está se repetindo. Então, vamos usar assim: se nós pudéssemos contemplar a natureza como ela é, o que nós veríamos seria um mecanismo de repetição. Assim... um[a espécie de] pisca-pisca. A natureza seria assim como alguma coisa que se acendesse e se apagasse; se acendesse e se apagasse... A natureza seria como... um céu estrelado; como pontos de luz que ganhariam a força máxima e depois decresceriam... Força máxima e decrescimento ― seria a natureza.

E agora vai acontecer o mais difícil desta aula, mas que lá pelo meio dela começa a se acertar. Essa natureza ― que eu estou chamando de “repetição permanente de pontos que se acendem e se apagam” ― chama-se IMPRESSÕES. O que quer dizer isso? Se nós olharmos para o céu estrelado... veremos as estrelas piscando; piscando assim... o tempo todo, nesse ato de piscar. Então, a natureza seria uma repetição nesse modelo chamado pisca-pisca, que eu utilizei. E a noção de pisca-pisca (que é uma noção completamente idiota) quer dizer: a natureza se constitui por repetições... de instantes. Isso é um instante... aí fecha. Outro instante... fecha. Outro instante... fecha. A natureza seria um processo de repetição de instantes.

A palavra instante pretende ser a menorunidade de tempo ― como, no relógio, a menor unidade de tempo é o segundo. Então, quando eu uso instante― é uma palavra abstrata que significa: a menor unidade de tempo. Então, a natureza se constituiria por um contínuo passar de instantes: aparece um instante, o instante desaparece; aparece outro instante, desaparece; aparece outro, desaparece. O que quer dizer que a natureza jamais conhecerá dois instantes conjugados. Será sempre um instante; o outro instante só aparece quando o primeiro desaparecer. Isso se chama (eu vou usar um nome um pouco forçado) HETEROGENEIDADE DE EXTINÇÃO: um instante tem que se extinguir, para que outro instante possa aparecer! Então, o que estou dizendo pra vocês é que a natureza é constituída por repetições de instantes. (Tá?)

Agora, essa “repetição de instantes” chama-se repetição das impressões ― as impressões se repetem! Por exemplo: se vocês olharem para a minha camisa, ela é marrom. Agora, se por acaso vocês olharem pra minha camisa, virem o marrom da minha camisa e, em seguida, fecharem os olhos... Quando vocês fecharem os olhos, vocês terão uma imagem do marrom ― podem experimentar! Essa filosofia, que eu estou explicando pra vocês, vai dizer que a imagem do marrom e a impressão do marrom diferem uma da outra por força― a impressão é forte; e a imagem é fraca.

(Então, vamos repetir:)

Eu olho para o vermelho deste gravador aqui; fecho os olhos ― e faço a imagem deste vermelho. Essa imagem [que eu faço] do vermelho é o próprio vermelho enfraquecido. Essa distinção de impressão forte para impressão fraca gera a noção de que “a natureza” é constituída de impressões fortes. Mas ― se por acaso aparecer alguma coisa para contemplar essa natureza (caso apareça um contemplador; senão, não!) ― vão nascer as impressões fracas.

(Vou voltar!)

A natureza são impressões fortes. Supondo o aparecimento de alguma coisa que contemple essa natureza ― um espírito que contemple! Quando esse espírito contemplar, o que vai aparecer no espírito são as imagens, as impressões enfraquecidas.

(Vamos voltar?)

A idéia, que estou passando, é que “a natureza é constituída de impressões fortes”, mais a suposição do surgimento de algo que possa contemplar a natureza. Esse algo ― que vai contemplar a natureza ― vai tornar as impressões fracas. Ou melhor, não é esse algo que torna as impressões fracas; as impressões têm dois modos de existência: forte e fraca.

Aluno: A impressão fraca é uma representação?

Claudio: Olha... usa: dá certo chamar de representação ― é uma representação da impressão forte! Mas, na verdade, não é uma representação da impressão forte ― ela é a própria impressão; mas, enfraquecida. (Vê se entendeu.) Na verdade só existe um elemento: a impressão... forte e fraca.
Al.: Uma pergunta: quando você fala em corte aí, que espécie de corte é esse?

Cl.: Forte! Não é corte, é forte... com f. Por exemplo, eu vou repetir pra você entender:

Você pega este extintor de incêndio. Olha como ele é vermelho! Se tivesse uma claridade maior, então, você veria a força do vermelho. Agora, fecha os olhos e faz a imagem do extintor: o vermelho está enfraquecido! O vermelho que você faz por imagem não tem a mesma força do vermelho ali[percebido]. Então, não é uma representação ― é a mesmaimpressão, com dois graus de intensidade diferentes.
Alº.: Por que dois graus e não três?

Cl.: Porque são dois! Porque não pode haver três. Poderia haver três da seguinte maneira: aqui está a natureza ― então, a impressão forte; e aqui está o espírito que contempla. Na hora que esse espírito contempla essa impressão, a impressão no espírito é fraca. Só haveria três, se atrás desse espírito houvesse outro espírito que enfraquecesse ainda mais essa impressão. Mas não!

Por exemplo, vamos tornar mais fácil para você entender:

Você vai para um lugar lá perto de Macaé chamado Conceição de Macabú. Você vai pra Conceição de Macabú em janeiro, ao meio-dia. Aí você sente o calor de Conceição de Macabú ― provavelmente 55 graus. Ai você sente aquele calor... Depois você viaja... vai para os Estados Unidos, para Nova Iorque, na primavera. Aí, você vai se lembrar do calor de Conceição. Na hora em que você se lembra, o calor lembrado é mais fraco que o calor sentido. É isso. Então, a presença do espírito faz com que a impressão enfraqueça.

Alº.: Mas pra que precisa do espírito? ---??---

Cl.: Não, meu filho, não é isso não. É para explicar o fato... Se você quiser dar outro nome você pode dar... É pra você compreender o fato de, na natureza, nós experenciarmos... Na nossa vida, nós experimentamos um vermelho forte ― que está no mundo; e um vermelho fraco ― que está na nossa imaginação. Isso é uma experiência que a gente faz! Então, como nós fazemos essa experiência de um vermelho forte no mundo e um vermelho enfraquecido na nossa imaginação, isso significa que as impressões têm duas intensidades. A impressão é forte forado espírito ou da imaginação; e fraca dentro da imaginação.
(fim de fita)

LADO B

(Eu vou continuar!)

O que estou marcando é a existência de dois tipos de intensidade. O fato de ter duas intensidades permite ao filósofo fazer a idéia de uma imaginação! A imaginação seria exatamente o lugar onde essa intensidade teria menos força. Ela, a intensidade, teria menos força dentro do espírito. E essa intensidade menos forte, essa impressão mais fraca ― alguns filósofos chamam de idéia; outros chamam de imagem. Então, é muito fácil compreender isso: a intensidade fraca pressupõe a imaginação (aí, provavelmente, a dificuldade que ele está tendo, que é uma dificuldade evidente...). Pressupõe a imaginação! E a imaginação, então, é a presença de alguma coisa que torna as impressões fracas.

(Vamos ver outra vez, vamos ver outra vez:)

O que nós chamamos de imaginação... Ou seja, se você estudar psicologia, se você fizer uma análise do que é a imaginação, você vai ver que a imaginação é uma conjugação de imagens. É isso o que nós chamamos imaginação. Ou seja, a imaginação pressupõe uma cadeia de imagens. E nós achamos que essa cadeia de imagens ― que aparece na nossa imaginação ― é produzida, por exemplo, pela nossa vontade.

Eu agora vou imaginar uma xícara ― e nessa xícara eu vou colocar um bigode e um olho, e fazer um rosto. Então, eu dirigi a minha imaginação para ela produzir um conjunto de imagens ― nós supomos que a imaginação regula a cadeia de imagens. Quando você supõe que alguma coisa no homem regula um determinado processo ― essa coisa no homem chama-se FACULDADE. Então, quando você tem um conjunto de imagens e supõe que esse conjunto de imagens tem um encadeamento determinado pelo que eu chamei de imaginação ― a imaginação passa a ser uma faculdade. A faculdade é aquilo que regula a passagem de alguma coisa.

Então, as imagens se dão na nossa imaginação, vão se combinando e nós supomos justamente que quem dirige a combinação dessas imagens é uma faculdade chamada imaginação. Mas ― em nós, humanos ― existe um processo que está exatamente entre o sono e a vigília: é o momento em que nós não estamos nem plenamente dormindo nem plenamente acordados; momento em que aparece uma cadeia de imagens, cuja combinação nós não somos responsáveis. Isso se chama HIPNAGOGIA.
A hipnagogia é quando está se dando uma cadeia de imagens ― imagens estão se combinando ― mas a nossa imaginação não está regendo aquele encadeamento ― a cadeia de imagens se processa independentemente da nossa imaginação. O que estou dizendo pra vocês é que a imaginação ― conforme está sendo pensada neste momento ― não é uma faculdade: ela é apenas o lugar onde uma cadeia de imagens se dá ― cadeia de imagens que se processa sem que ninguém dirija a sua combinação. Ou seja, essa teoria, que estou passando pra vocês, chama de “espírito” alguma coisa que não tem nenhuma força, nenhumpoder, mas onde se dá um processo de encadeamento de imagens; sendo que ― quem faz essas imagens se reunirem não é a imaginação: são as próprias imagens. Então, a imaginação seria um conjunto de fotografias semálbum, a imaginação seria peças de teatro sem teatro. Ou seja, a imaginação seria o conjunto de imagens, sem nada que viesse regular a cadeia que essas imagens fazem.

Alº.: Como se fosse um filme que ainda não está montado!?

Cl.: É... É um filme que não está montado, em que os fotogramas podem mudar à vontade, mas em que a mudança dos fotogramas não é determinada pela imaginação. A mudança se dá pelo próprio poder das imagens: elas que vão mudando.

Alº.: Claudio, ---?-- existe uma concepção de montar imagem...? Ou seja, existe uma harmonia pré-estabelecida, uma concepção da montagem do encadeamento das imagens?
Cl.: Não. Isso é o que chamei de hipnagogia. A hipnagogia é uma cadeia de imagens onde você não encontra um sujeito que organiza, determinando a passagem daquelas imagens. Essas imagens não têm um sujeito ― elas se combinam livremente, livremente... Então, aqui começa a aparecer a idéia mais difícil: o fato de a imaginação ser o lugar onde as imagens estão, mas a imaginação não ser uma faculdade ― ela não tem nenhum poder sobre essas imagens. No entanto, essas imagens vão constituir a imaginação. Por isso, como estou colocando pra vocês, a imaginação ― que é uma cadeia onde qualquer imagem pode se misturar com qualquer imagem, sem que essa mistura seja determinada por alguma faculdade ― é uma combinação livre e delirante. O que significa que o espírito é um... delírio. O espírito é um delírio!!!

Al.: O quê?

Cl.: Delírio! Delírio no sentido de que essas imagens vão se combinando umas com as outras ― sem que haja nenhuma ordem, nenhuma lei, nenhuma regra organizando essas imagens. Elas vão se combinando livremente.

Alª.: ----?---Cl.: É... Mas acho que a gente nem devia usar esse nome já. A gente vai usar aqui o fato de que uma cadeia de imagens, quando se processa, traz uma coisa muito original ― que é a liberdade da combinação. Não há regra; não há lei ― tudo pode se misturar com tudo. Parece muito com um filme do Vertov.

Alº.: No caso da hipnagogia ----- importante não apenas a ordem com que essas imagens se apresentam, mas também a capacidade de interpretar essas imagens.

Cl.: Não, não. Não estou me importando... De forma nenhuma! Nada disso! Não tem a menor importância isso que você disse! A única coisa que importa é pegar o modelo da hipnagogia e você saber que as imagens podem fazer combinações... qualquer combinação ― nenhuma combinação é proibida! Não há lei, não há regra governando a combinação das imagens. Quando você diz isso ― e identifica esse processo de imagens ao espírito, você tem que dizer que o espírito é um delírio. O espírito é um delírio, no sentido de que essas imagens vão se combinando uma com a outra, sem nenhuma lei. Então, não posso concordar com o que você disse, porque ainda não tem um sujeito que possa interpretar. Não tem nada disso. Você só tem as imagens se misturando umas com as outras.

Alª: Até porque, quando tem o sujeito, elas vão ser colocadas em ordem!?
Cl.: Vão ser colocadas em ordem! Aí que elas vão [ser] o que ele falou: causa e efeito..., etc.

Alª.: Mas nessa hora elas também elas perdem autonomia, não é?

Cl.: Aí elas perdem a autonomia.
Alº.: Quer dizer que o sujeito então é sempre um sujeito racional e consciente
Cl.: Olha... Não é sempre racional e consciente. É um sujeito que tem certa lógica. Ele tem uma lógica! Não necessariamente consciente. A lógica que ele tem, já puxando aqui..., a lógica dele é jogar três princípios em cima dessas imagens: causa e efeito, semelhança e continuidade. A partir daí as imagens passam a ter uma regra― mas só posteriormente. O que me importa agora é que elas não têm nenhuma regra, elas se combinam no processo mais delirante possível.

Alº.: Aleatório...

Cl.: Aleatório, inteiramente aleatório! Sem regras, sem leis, sem nenhum princípio.
Mas aconteceu aqui uma coisa interessante. Uma coisa interessante... e diferente, porque no momento em que eu digo que essas imagens podem se combinar uma com a outra, indiferentemente, significa que as imagens têm uma diferença para as impressões. Porque as impressões são assim, ó [Claudio faz um gesto...] e as imagens se interpenetram. (Vejam se entenderam!) Nasce uma idéia de interpenetração ou uma idéia de fusão. Vou usar interpenetração! Quer dizer, as impressões fracas fazem aparecer a combinação livre das imagens e elas começam a se interpenetrar. É à interpenetração das imagens que eu vou chamar de SÍNTESE.

Alº.: Como é que as imagens se interpenetram?

Cl.: É só você... Eu vou mostrar pra você. Você fecha os olhos...
Alº.: Você usa imagem-imaginação. Você usa a palavra processo da imaginação e usa o substantivo imagem, como produto, não é? Então, --- o paradoxo em termos de processo e produto- ----, não é?

Cl.: Tá. É que as imagens... Se você fechar os olhos... Imagina assim uma xícara. Agora coloca o rosto do Sarney na xícara. (Colocou? É só fechar os olhos... e colocar.) Isso significa interpenetraçãodas imagens.
As imagens se interpenetram ― não por causa da imaginação ― mas por causa delas: é uma propriedade das imagens se interpenetrarem! Ora, se é uma propriedade das imagens se interpenetrarem ― elas se interpenetram uma na outra ― as imagens se diferem das impressões. Porque as impressões não se interpenetram. Elas são uma heterogeneidade de extinção. Aparece uma impressão, desaparece. Aparece outra. Aparece uma impressão, desaparece. Aparece, desaparece. Nas imagens, não. Nas imagens há a interpenetração.

(Como é que vocês acharam... essa distinção? Eu não tenho nenhuma pressa, nenhuma pressa!)

Alª.: A única coisa que eu queria sentir é se elas se interpenetram... Elas se escolhem?!
Cl.: Não, não! Elas se interpenetram livremente, livremente, ao acaso, ao acaso...

(Eu já vou melhorar isso daqui a pouco...)

Alº.: A relação de interpenetração de imagens e idéias...

Cl.: Aqui você pode dizer que é a mesma coisa: interpenetração de imagens ou interpenetração de idéias, como sendo a mesma coisa.
Alº.: A ---- Sarney é sempre uma idéia...

Cl.: Uma idéia ou... uma imagem.

Alª: A imagem pressupõe o observador?

Cl.: Sim. A imagem pressupõe um observador. Mas eu estou admitindo a hipótese da hipnagogia... E a hipnagogia não pressupõe o observador! (Vê se entendeu...) O observador pode ser pensado de duas maneiras: um observador que, ao observar, não altera o que está observando; e um observador que, ao observar, altera o que está observando. No caso da imaginação, a imaginação não altera o mecanismo da imagem.
― Qual é o mecanismo da imagem? O mecanismo dela é interpenetrar.

Alº.: Mas o observador, quando observa alguma coisa, ele observa sob certo ponto de vista, não é verdade?

Cl.: É.

Alª.: Como no quadro do Dali?

Cl.: Não... não... não. Não é como nos quadros do Dali, não. Não, senhora!

Alº: O observador, nesse caso, não é sujeito

Cl.: Olha lá! É isso o que euestou dizendo toda hora! O observador não é um sujeito: o observador é apenas um lugar; um lugar... onde essas imagens estão se interpenetrando.
Alº.: ---uma cultura, uma ----, uma religião, é um sujeito puro???

Cl.: Não... Não tem sujeito. Aqui tem as imagens, elas vão se interpenetrando ― porque é da natureza das próprias imagens se interpenetrarem; elas se interpenetram por elas mesmas. Quer ver uma coisa?

Alº.: ---- (in)dependente da cultura ou da linguagem as pessoas ---

Cl.: Isso é que vai... Ninguém consegue, nenhuma pessoa consegue! Isso que vai constituir a pessoa: a pessoa vem depois!
Alº.: ---?--

Cl.: (Presta atenção!) Você pega uma imagem de cavalo. Agora pega uma imagem de águia. Arranca as asas da águia e coloca no cavalo ― isso é um cavalo alado! (É fácil, é a maior tranqüilidade: no mesmo instante você faz isso, porque as imagens se combinam livremente. Qualquer tipo de imagem pode se misturar com qualquer tipo de imagem: não há nada que proíba a interpenetração das imagens. (Certo?) Então é delas: não é da imaginação. É das imagens... a interpenetração é da natureza das imagens... É da própria natureza das imagens a interpenetração.

Alº².: No caso das imagens em movimento numa projeção de cinema. Aquelas imagens, na verdade... [são] uma associação de fotogramas. Elas estão em movimento. Esse movimento só existe no espectador. ----do espectador. Então, esse movimento é uma propriedade não daquelas imagens ― que não estão na verdade em movimento; mas sim, do espectador.

Cl.: É, você pode usar isso ― desde que você torne os fotogramas a impressão da natureza e, o que o espectador observa, a imaginação. Não sei se você entendeu?
Alº².: Mas nesse caso, mesmo que ele fosse um observador, ele estaria impondo, não uma certa ordem...

Cl.: Assim você está se confundindo, porque você está querendo se confundir... É a coisa mais simples o que estou dizendo: as imagens se interpenetram por natureza delas. Não é um sujeito que faz isso.
Alº².: Não, mas eu não estou falando de um sujeito, eu estou falando de um receptor.

Cl.: O receptor, ele... não há receptor!

Alº.: Porque...

Cl.: Presta atenção! O que importa é que você tem dois tipos de impressão: uma impressão forte e uma fraca. A impressão forte é uma heterogeneidade de extinção. Aparece uma impressão; para que outra possa aparecer, é preciso que a primeira desapareça. É assim... assim que funciona! Agora, a imagem é a própria impressão com a propriedade de se interpenetrar ― é essa a diferença principal. A impressão é assim: é um processo de extinção ― e é isso que se chama instante. Aparece uma impressão, desaparece; aparece outra, desaparece; aparece outra. A imagem pega essas impressões e interpenetra. Ela interpenetra as impressões!

Alº².: Como? Como se esses instantes... como se...

Cl.: São os poderes da natureza: eu não sei por que acontece!
Alº².: É como se os instantes, no primeiro caso, fossem moldes e no segundo, modulações.
Cl.: Não... assim você ainda perde! Porque a impressão é a mesma; é a mesma, com duas maneiras de funcionar: uma, na heterogeneidade de extinção; e a outra na interpenetração. Ela interpenetra... Você pode fazer o seguinte, isso é muito fácil: você pega... Quer ver uma coisa? Você olha para estes óculos e olha para esta garrafa. Aqui está esta garrafa e aqui [do lado] estão estes óculos. Se você transformá-los em imagem... você interpenetra um no outro. Você joga esses óculos para dentro desta garrafa com a maior facilidade. Agora, quem está fazendo, quem está dando esse poder à imagem não é a imaginação, esse poder é da própria imagem. É ela que tem esse poder! São as imagens que têm o poder de se interpenetrar; não as impressões. Ou melhor: as impressões fortes não se interpenetram, as impressões fracas se interpenetram. Então, essa interpenetração das imagens chama-se CONTRAÇÃO. Ou seja:
― O que quer dizer contrair? Contrair é juntar! As imagens são contraídas; as impressões são separadas. Então, você teria a contração das imagens ― a contração é o processo da interpenetração; e você teria a repetição das impressões. Eu vou chamar essa repetição das impressões de REPETIÇÃO FÍSICA.
― O que é repetição física? São as repetições que se dão eternamente assim: aparece uma; para outra aparecer, a primeira tem que desaparecer. A categoria filosófica exata a ser usada é MENS MOMENTANEA.

―O que é a mens momentanea? Aparece a impressão... desaparece. Aparece a impressão... desaparece. Aparece a impressão... desaparece.
Agora, essa impressão ― enfraquecida ― se torna imagem; e começa a se interpenetrar. A interpenetração é o que estou chamando de contração. Para haver contração ― eis o momento mais difícil! ― é necessário que haja uma contemplação. (Isso eu vou tentar dar na próxima aula, pra vocês entenderem). Onde há contração, há contemplação. (Ficou muito difícil?) E à contração e à contemplação ― esses dois nomes JUNTOS ― eu vou chamar de... ESPÍRITO.

― O que é o espírito? O espírito é contemplação e contração. A noção de espírito não é uma noção de ordem religiosa. Ele é um mecanismo que contrai ao contemplar. O ato de contemplar é simultâneo ao ato de contrair. Não há uma contemplação e depois uma contração. Ao contemplar, o espírito contrai.

― O que faz o espírito que contrai? Ele junta o que na natureza está separado. Como? (É muito fácil, eu vou explicar pra vocês:) eu me deito em casa e coloco, ao meu lado, um relógio ligado. O relógio trabalha fazendo: tic-tac, tic-tac. O tic só aparece, quando o tac desaparece. E o tac só aparece quando o tic desaparece. E você fica ouvindo tic-tac, tic-tac... um, separado do outro; ou seja: INSTANTES HETEROGÊNEOS DE EXTINÇÃO. Mas o meu espírito, quando ouve tic-tac, tic-tac, tic-tac... e aquilo vai se repetindo... após muitas repetições do tic-tac, o meu espírito, quando ouve o tic, não espera o tac aparecer: ele antecipa ― dentro dele ― o tac. (Vocês entenderam?) O espírito antecipa. Ele não espera o surgimento do tac. Eu antecipo o surgimento daquilo dentro do meu espírito. Essa antecipação faz com que o tic e o tac, [ou os instantes] que na natureza estão separados, dentro do meu espírito estejam juntos.
(Agora, vamos juntos!)
Alº.: Em outras palavras, evita a extinção?

Cl.: Ele evita a extinção, ele junta um instante com outro instante... Na natureza, os dois instantes estão separados pela eternidade... A eternidade os separa: porque nenhum instante pode aparecer junto com outro instante ― cada instante aparece separado do outro... Aí o espírito “vê” o instante; o que ele faz? Ele guarda aquele instante, retém, segura aquele instante e ― em vez de esperar o outro aparecer ― ele o antecipa: [antecipa o instante seguinte]. Retendo um e antecipando o outro, ele faz uma síntese dos dois instantes: os dois instantes ― dentro dele ― estão juntos. E no momento em que ele faz isso, uma coisa surpreendente vai acontecer:

(Vocês me perguntem!)
No interior do espírito dois instantes se interpenetraram, dois instantes se juntaram. Nesse momento, em que dois instantes se juntam, nasce uma EXTENSÃO. Porque, quando você só tem um instante, você não tem extensão; agora, quando dois instantes se juntam, nasce uma extensão. Essa extensão chama-se DURAÇÃO, ou seja: O TEMPO nasce no espírito.
― O que é o tempo? O tempo é a conjugação de dois instantes. Na natureza, esses dois instantes são INSTANTES DE EXTINÇÃO. (Agora vai começar a ficar mais difícil... e, ao mesmo tempo, mais fácil!). Na natureza ― os instantes se extinguem; eles não passam. Nenhum instante passa! Agora, quando o espírito observa, e guarda o instante e antecipa o outro ― ele junta os dois. Na hora em que ele junta os dois ― o primeiro instante torna-se o passado do segundo instante; e o segundo instante torna-se o futuro do primeiro instante. E a junção dos dois... é o presente. Ou seja: a contemplação e a contração inventam o TEMPO.

Essa contração, em filosofia ― nessa filosofia que estou apresentando pra vocês ― chama-se HÁBITO. Então, nós temos o hábito de entender a palavra “hábito” equivocadamente. Hábito quer dizer contrair. Contrair é juntar alguma coisa que estava separadada outra. Então, o espírito faz uma prática de SÍNTESE ― só síntese: ele junta um instante que está separado [do outro]. Ele junta ― dentro dele ― os dois instantes. Ou seja: ele joga a interpenetração nos dois: ele junta os dois. Isso se chama síntese. Mas essa síntese não é feita pelo espírito ― é feita pelas próprias imagens ― por isso chama-se PASSIVA.

O NASCIMENTO DO TEMPO não pressupõe um sujeito ― pressupõe o espírito; mas não o sujeito. E o tempo nasce pela SÍNTESE PASSIVA.
― O que é a síntese passiva? É a junção dos dois elementos que na natureza estão separados ― e no espírito se juntam. Aí, a junção é uma síntese ― mas essa síntese é passiva. Por que ‘passiva’? Porque não há nenhum sujeito pra fazer essa síntese.

Isso que estou falando pra vocês é a idéia, a primeira IDÉIA DE TEMPO. A primeira idéia de tempo é que o tempo não se explica pela natureza ― porque a natureza é uma repetição de instantes separados. E o espírito é a conjugação desses instantes. Portanto, o tempo é SUBJETIVO ― mas uma subjetividade sem sujeito.

(Agora vocês podem me perguntar, porque eu encerrei essa fase: é uma subjetividade sem sujeito.

Alº: Você falou em extensão e --?-- movimento de extensão. Eu tenho a impressão que essas duas coisas são diferentes.

Cl.: Não. O que eu chamei de extensão... (Deixe-me eu explicar, você vai entender claramente!). É o seguinte: quando você tem os instantes na natureza, esses instantes não duram. Durar...
(fim de fita)

Parte 2
[...]

(Isso aqui é difícil:)

A paramnésia gera as duas dimensões ― o presente e o passado. O presente e o passado aparecem simultaneamente. Mas na hora em que se trata de presente e passado simultâneos (e eu estou dizendo presente e passado; não estou dizendo presente e presente; nem estou dizendo passado e passado: estou dizendo presente e passado!),significa que, entre uma dimensão e outra, há uma diferença. Então, há uma diferença entre os dois [entre o passado e o presente]. Essa diferença é a intensidade: a diferença entre as dimensões do tempo. A diferença é o que se chama INTENSIDADE. (Momento difícil!)
Alª.: Isso está --?---- simultâneo

Cl.: Simultâneo! Porque o que está acontecendo aqui, é que eu coloquei duas coisas pra vocês, e ― evidentemente ― isso não ficou muito claro! Quando eu falei na contração ou na síntese passiva do hábito, eu mostrei que o espírito é diferente da natureza ― porque no mundo da natureza é repetição de instantes; e no do espírito é interpenetração de imagens. Então, eu disse que o espírito que contempla não modifica a natureza, mas modifica a si próprio. Isso é de uma originalidade extraordinária, porque o ato de contemplar não produz modificação na natureza, mas modifica o contemplador. O contemplador se modifica: esse é o primeiro processo do tempo.
O primeiro processo do tempo é essa modificação na contemplação; aparece a interpenetração das imagens ― e é isso exatamente que vai ser a primeira síntese do tempo; e, em seguida, o Bergson vai dizer que essa maneira de pensar o tempo não é suficiente. Considerou-a insuficiente. É aí que ele aplica essa noção de paramnésia! (E agora eu vou melhorar pra vocês entenderem o que está se passando aqui.)

Os suecos, os russos, alguns americanos experimentais ― ao fazerem cinema ― procuraram produzir personagens que não tivessem um esquema sensório-motor perfeito. James Stewart em Janela Indiscreta, por exemplo, tem as duas pernas quebradas. Tendo as duas pernas quebradas, ele não pode agir. Não podendo agir, ele apenas contempla. Então, o nascimento do tempo ― no cinema ― pressupõe a quebra do esquema sensório-motor, por dentro.

Você quebra o esquema sensório motor; vamos ver um exemplo: você pega um homem normal... O homem normal percebe o mundo, tem afecção, e reage àquilo que percebeu. Então, o esquema sensório-motor é perceber, afetar e agir ― é isso o esquema sensório-motor.

Mas agora você pega, por exemplo, uma pessoa agonizante; uma pessoa que esteja morrendo. Essa pessoa percebe o mundo, tem afecção do mundo, mas não tem forças para devolver. Ela não tem forças para reagir. Então, o cinema começou a fazer experimentações em agonizantes, por exemplo. Na hora em que o cinema começa a experimentar o agonizante, o cinema vai abandonar o movimento como seu centro. Por quê? Porque um homem que tem seu esquema sensório-motor perfeito, na hora em que ele recebe um movimento, de imediato, ele devolve o movimento. Agora, se você pega um agonizante ― ele não pode devolver movimento; aí, ele não reage, ele não age. Aquilo que ele recebe do mundo, para na afecção, para no meio; não se prolonga numa reação. Então, para você passar do cinema-movimento para o cinema-tempo, o que tem que acontecer é a quebra do esquema sensório-motor. Quebrar o esquema sensório-motor!

― Como é que o Hitchcock faz isso? Quem viu Janela Indiscreta? O que faz Hitchcock em Janela Indiscreta? Quebra as duas pernas do James Stewart. E o James Stewart não pode mais fazer, o quê? Reagir. Ele não pode mais reagir: ele só pode contemplar.

Naquele outro filme ― Um Corpo que cai ―o que o Hitchcock faz? Ainda no James Stewart, ele coloca uma acrofobia?Medo da altura? Ele coloca uma acrofobia no James Stewart ― que, então, não pode mais agir. Então, a passagem do cinema movimento (eu acho que está perfeito,P--!) para o cinema tempo pressupõe a quebra do esquema sensório-motor.
Al.: Quando você deu o exemplo do Turner, também pressupõe essa quebra ― até ele chegar naquela última tela que você expôs? Foi o exemplo que você deu, o exemplo do Turner... que primeiro pintava aquelas marinhas, depois ele foi... É o mesmo exemplo?

Cl.: Ah, sim; sem dúvida! É a mesma coisa! Um artista... Vamos dizer: eu percebo o mundo. No meu ato de perceber o mundo, necessariamente esse mundo (que eu percebo), não pode ser novo pra mim! Porque se você tiver um ser vivo que percebe um mundo inteiramente novo, esse ser vivo vai morrer. Ele não vai saber reagir a esse mundo. Por isso, quando eu percebo o mundo, quando qualquer ser vivo percebe o mundo, o ato de perceber não é o ato de conhecer ― é um ato de reconhecer. É um ato de reconhecimento. É assim que funciona o esquema sensório-motor: ele reconhece o mundo. Ele está sempre reconhecendo o mundo, para ele poder agir nele.

Agora, no momento em que eu sou um agonizante, eu percebo o mundo. Percebo-o. Aí, essa percepção me afeta ― a percepção produz um afeto. Essa afecção, que eu tive, não pode devolver nenhum movimento, nenhum movimento, eu não posso devolver nada! Então, no momento em que eu percebo esse mundo ― e o mundo chega até mim, na afecção, em vez da afecção se prolongar numa resposta, numa reação, a afecção volta para a percepção. E ao invés de ficar com a percepção, a afecção mergulha no próprio tempo: o agonizante volta para a sua história pessoal. Ao invés de fazer alguma coisa, ele volta para o tempo. É como se fosse alguém que tivesse morrendo afogado e que a história toda dele passasse ali, naquele momento. Na hora em que o afogado já não pode mais reagir ― ele não tem mais como reagir! ― o que acontece com ele? O passado começa a aparecer pra ele. O que significa que o esquema sensório-motor foi quebrado ― porque o esquema sensório-motor implica uma reação.

Então o primeiro modelo do cinema, que eu estou passando pra vocês, é que o cinema-tempo e o cinema-movimento se diferem no esquema sensório-motor. Ou seja: o esquema sensório-motor do Gary Cooper num western, do John Wayne num western, do Clint Eastwood num western tem que ser altamente perfeito; senão, eles morrem!

Agora, a experimentação de colocar dentro da imagem ― dentro da imagem ― não mais o MOVIMENTO, mas o TEMPO, nós vamos tomar como modelo, porque todo mundo viu dois filmes, principalmente o Janela Indiscreta, do Hitchcock. Porque quando o Hitchcock quebra as duas pernas do James Stewart, o que ele retira dele é a capacidade de reagir: o James Stewart não pode mais reagir! Não podendo mais reagir, ele só pode PERCEBER. Então, ele deixa de ser actante, para se tornar percipiente. Ele não age mais; ele passa a perceber. Ele se torna um ‘olhador’ da casa dos outros, fica olhando pra casa dos outros... (Tá?)

Mas o James Stewart ainda não passou para o Tempo! Não basta quebrar duas pernas para entrar no tempo ― quebrar as duas pernas impede a reação. A entrada no tempo ainda não é isso; mas, é o ponto de partida. Só se pode entrar no tempo, se o esquema sensório-motor for quebrado por dentro ― fendido por dentro.

Então, eu estou dizendo pra vocês que o modelo do cinema-movimento é exatamente PERCEPÇÃO, AFECÇÃO, REAÇÃO. Esse é o modelo que você tem no cinema, e o modelo que você tem na vida. O cinema tentou conquistar o tempo. Tentou! Ou seja: tentar conquistar o tempo é quebrar a potência reativa do ser vivo. Abandonar a potência reativa do ser vivo. Ou seja: eu percebo o mundo, e aquilo que eu percebo para na minha afecção. Para na afecção. (Vocês entenderam aqui?) Para! Não se prolonga na ação. Mas quando cai na afecção, a afecção é um pequeno intervalo. PEQUENO INTERVALO. Esse pequeno intervalo está preenchido por afetos, porque esses afetos são para ― conhecendo como é o meu corpo ― eu saber que espécie de movimento eu vou devolver ao mundo. Então, são os afetos que me dizem: devolva os afetos dessa maneira: Corra! Coma! Fuja! Beije! Mate! São os afetos que estão me dizendo. Mas no momento em que eu não tenho mais a possibilidade de reagir ao que eu percebi ― os afetos desaparecem. E, no lugar deles, entra ― exatamente ― a FORÇA DO TEMPO.
(Vejam bem, vou repetir:)

Os afetos têm uma função no nosso corpo: a função de nos dar o conhecimento do nosso próprio corpo. Conhecendo o seu próprio corpo, você estabelece a maneira como você vai reagir a uma determinada percepção que você teve. Mas como você não pode mais reagir, os afetos já não têm mais nenhum valor. Porque a função deles é ― devolver movimento. No momento em que eles não valem mais nada, esse vazio vai ser preenchido por outra força ― a FORÇA DO TEMPO.
Alª.: Cidadão Kane seria um exemplo?
Cl.: Sim. Cidadão Kane é um exemplo!
Alº.: Do tempo?

Cl.: Do tempo!

(Vamos tentar aqui, não é difícil o que eu estou dizendo.) A experiência do James Stewart em Janela Indiscreta é a melhor pra vocês entenderem: não há pra que, nesse filme, o James Stewart conhecer o corpo dele, porque [ele não pode agir;] ele não pode fazer nada; não tem nada a fazer! Um bonito exemplo é quando o Tim Roth leva um tiro na barriga, em Cães de aluguel e que ele não pode se mover...

(Vocês acham que foi bem aqui?)...

Alº.: Uma dúvida: essa imobilização pode ser psicológica? Por exemplo, em Morte em Veneza onde o Achenbach também estava impedido de qualquer ação em direção àquele amor dele. Era uma coisa contemplativa... não é?
Cl.: Não é exatamente isso; mas vamos dizer que seja!

Alº.: A pergunta é por aí...

Cl.: O Visconti é um cineasta do tempo! Portanto, ele vai abandonar o esquema sensório-motor; não vai mais trabalhar com os processos de reação. Eu agora vou usar uma linguagem do Rimbaud, um pouco diferente. Eu disse que em Janela Indiscreta o James Stewart deixa de ser...? O que eu disse?

Alª.: Actante.
Cl.: Deixa de ser actante, para se tornar percipiente, está certo? Mas, quando nós entramos no tempo, não é um percipiente que entra no lugar de um actante ― mas o que Rimbaud chama de VIDENTE.

Vai surgir o cinema da vidência ― em substituição ao cinema do actante. Vai surgir uma literatura do vidente... e desaparecer a literatura do actante. (O Robbe-Grillet está vindo aí, [ele vai falar na UFRJ!]) Ou seja: na literatura realista, a personagem age, a personagem reage. Quando você quebra o esquema sensório-motor, aquele pequeno intervalo já não tem mais nenhuma função. (Ainda não dá para explicar pra vocês...mas que eu vou apenas citaro nome...) É esse o momento do surgimento do que eu vou chamar de CRISTAL DE TEMPO.

(Eu obtive êxito nesta aula? Vocês acham que eu obtive êxito? Então, o que eu quero que vocês [guardem] é o problema do esquema sensório-motor. Agora eu vou dar um pequeno exemplo pra vocês:)

Vocês pegam um ator do faroeste, um ator do Hitchcock e um ator do Visconti. A maneira de interpretação [de cada um deles] é completamente diferente. É completamente diferente! Ou seja: quando você sai do processo do esquema sensório-motor ou do processo em que o ator é um actante, ele é um actante no cinema realista; quando você passa para o cinema tempo, ele deixa de ser actante pra ser vidente, o processo de interpretação é inteiramente novo.

Alº.: Isso se processou no Visconti, com o Burt Lancaster, não é?

Cl.: Ele ter sabido fazer isso, não é? É isso que você está dizendo?

Alº.: É ------?---- com a maior facilidade...

Cl.: É, ele conseguiu passar, em dois filmes do Visconti, ele conseguiu passar... Porque ele levou a vida dele toda sendo actante, pra trabalhar no cinema de Hollywood ― no cinema modelo Stanilawsky, modelo Actor’s Studio... Quando ele vai trabalhar com o Visconti, ele deixa de ser actante, pra ser vidente; e consegue fazer isso com uma perícia extraordinária. Então, eu lancei pra vocês aqui uma pequena diferença ― que é no ator. O exemplo melhor que vocês têm...

(Eu vou terminar a aula aqui, tá?)

Um grande exemplo que vocês têm é o cinema do Hitchcock. Já passou aí ― eu já mandei passar ― o Disque M para matar. Você pega o Disque M e pega os três atores desse filme ― o Ray Milland, o Robert Cunnings e a Grace Kelly ― e a gente pega os atores de um cinema realista como, por exemplo, Um Bonde Chamado Desejo ― o Marlon Brando e a Vivien Leigh, certo? Os atores do cinema realista têm um comportamento explosivo ― eles se comportam segundo a manifestação do seu sentimento. O Hitchcock dá uma ordem para o seu ator: “Seja neutro! Inteiramente neutro!
― Por que neutro? Porque, diz o Hitchcock, quem vai trabalhar aqui não é você. Quem vai trabalhar é a câmera. É a câmera que vai trabalhar. Que o ator fique neutro!

Então, vocês viram Disque M para matar! Há um momento, no filme, em que a Grace Kelly descobre quem tinha matado não sei quem

Alª.: ---- pra matá-la!

Cl.: Aí o marido dela diz assim: “Não vai ficar histérica, hein?” Aquilo é uma piada ― do Hitchcock ― contra o cinema realista. Porque, se fosse o cinema realista, ela ia começar a dar saltos, pulos, gritos... No cinema do Hitchcock, não! Tem que ficar inteiramente neutra. Agora, quando nós passarmos para o cinema-tempo, o primeiro exemplo que nós vamos ter aqui é um filme chamado Providence do Alain Resnais... Nós, aí, vamos começar a conhecer novos processos interpretativos. Inclusive, o ator finge estar trabalhando mal.
Al.: Claudio, Festim Diabólico também é um bom exemplo disso, não é?

Cl.: É um bom exemplo!

Alº.: Ele tem marcações...

Cl.: Não é só isso... É um plano único, é um plano sequência, não é?
Alº.: Ele só --- a roupa...

Cl.: É. Ele só muda a roupa...

Alº.: ---
Cl.: Tá, tá. Vocês...

Alº².: Existe o cinema-movimento, o cinema-tempo e o cinema paramnésico???

Cl.: Não, não, não. A questão da paramnésia foi introduzida aqui com o objetivo de [marcar] uma diferença entre o passado e o presente. Foi esse o objetivo que nos levou à paramnésia. Foi introduzir duas idéias pra vocês: diferença e intensidade. Porque essas duas idéias vão ser a garantia do cinema-tempo.

Eu acho que Janela Indiscreta indicou bem o que eu quis dizer e... ― eu vou só fechar aqui pra vocês. Atenção para o que eu disse: a personagem do cinema-movimento é um actante. Em Janela Indiscreta, a personagem é percipiente. Mas, quando nós passarmos para o cinema-tempo, a personagem não será um percipiente, será um vidente. Por quê? Porque ela vai ver o fundo do tempo. É isso que é a obra do Orson Welles, do Visconti, do Resnais, do Godard, do Realismo Italiano... produzir a vidência ―para entrar no TEMPO.

(Está bom, não é?)

(palmas...)

Cl.: Não, não, não; na última aula vocês batem palmas!

(risos...)

Aulas transcritas: Aula 5 – Filosofia e Cinema em 26/07/1995



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