domingo, 4 de outubro de 2009

Hotel do Tempo - Brasigóis Felício


FELÍCIO, Brasigóis. Hotel do Tempo. Ed: Civilização brasileira, 1981. 247 páginas.

Biografia do autor: http://palavrarte.sites.uol.com.br/Equipe/equipe_brasigois.htm

Temporal humano
O tempo, impassível, assiste
escorrer com mel e sangue
a nossa trágica humanidade.
Somos a carnes
e a pressentimentos.
Mas tem um medo atróz,
que nos torna fugitivos
das noites mais escuras
dos que bebem, e ficam loucos.

II

Ao tempo, não importa
o pôdre ou a porta que existam
em nossas víceras:
age somente sobre o tempo e os ossos.
( O brilho dos olhos já nem aparece
em certo mortos-vivos que conheço).
As línguas de sal e os presságios
a vida, imersa e sobrevivente
da noite de mil anos, um oceano de sangue
onde se afoga o animal humano,
em riste e triste.

III

Máquina de medo e simulação.
Painel de maravilhas
e de crimes hediondos
a vida, jaz, assassinada
e sobrevive ainda
nas víceras dos vivos rescendendo
a fezes e eternidade.
(Páginas 63-64).


Viagem abissal

Fôsse sempre este silêncio
e a paz eu abitaria, definitivo.
Fôsse sempre essa entrega
às coisas que passam,
no dorso do tempo.
Só, como poderia estar
um vivo humano,
numa paz absoluta
só de quem está morrendo
e deixa de lutar
contra a noite
e a luz que o envolve,
eu habito o que me habita:
a quietude das coisas
garuejando
nos tendões do vento.
Que venha a morte,
e me convoque quando quiser
- já não a temo
desde o dia antigo em que a busquei
nos rios, e no silêncio
e só a vida eu encontrei em tudo.
Que venham a mim
todas as vozes que me chamam:
seja isto
a pura alegria dos anjos
ou os gemidos do sangue, e dos demônios.
(Página 108).

O Tempo e os olhos

Veio a chuva, veio o tempo
no dorso nu da memória
com sua carga
de limo e de espera.
O tempo veio, e levou
sua ferrugem, e os ossos
e o que restou, em ruínas
da nossa busca de escombros:
essa aventura inútil.
O tempo veio, e ficou
nos ossos dos despojados
e no sangue que estocou.
(Página 158).


O tempo e os ossos
Não sou nenhum mago
mágico ou médico de dementes
para saber das coisas do tempo
como sabem da morte e da vida,
intensamente,
os que estão doentes.
Não sou nenhum idólatra
na solidão que rói meus ossos
e range e ruge como um bicho
nos meus olhos
se uma estrada me espera
e no tempo são seis horas.

Não sou, não serei nunca um visionário
a não ser pobre advinho do meu transe
e um que sabe dos limites
e mesmo se entregando
não esqueceu jamais que é um corpo.
Por isso doem tanto os fins de tarde
as noites no início,
e as crianças sorrindo
uma hora antes de morrer.
Por isso. Só por isso me entrego
ao tumulto dos butecos
e de vez em quando me permito passear dentro da noite,
como um louco.

Não sou, repito, nenhum idólatra
da solidão que rói meus ossos
por isso. Só por isso busco tanto
nas vísceras e no tempo
a minha fragilidade
e o meu poder de esquecimento.
(Página 207).







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